segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

um ruído distante é a única prova de que tem alguém ou alguma coisa viva na área embora a quilômetros de distância mas pode ser só o vento o que é mais provável há muito tempo muito mesmo nada mas nada mesmo acontece ou passa por estas remotas regiões por aqui nem o vento passa mais no fundo não é bem assim quem diz que nada acontece está valorando e se há valor é porque existe movimento ainda que menor se esperam rajadas de vento ou qualquer evento ou macroevento menosprezam os microeventos sucessão de acontecimentos quase imperceptíveis difíceis de se enxergar a olho nu ou de se captar por antenas que apenas captam macroeventos vidas em câmera lenta mas tão lenta a ponto de impossbilitar a irrupção de um movimento abrupto ou rápido que interrompa uma sucessão de micromovimentos lentos como pode realmente acontecer mesmo todos achando que é improvável que aconteça os microeventos parecem rejeitar a si mesmos já que os protagonistas desse estado quase letárgico talvez a palavra não esteja bem colocada vivem em quase invisíveis condições enfurnados em estados ou estágios de discreta mobilidade o tempo passa como na cidade os acontecimentos é que não o problema é que este lugar parece não se assumir em sua mobilidade desconcertante nesse quase vazio como é possível acontecer alguma coisa? as formigas se dependesse delas tudo era só movimento mas sem manifestações bombásticas tudo sempre na maior discrição as vespas predadoras das formigas e cupins com aparência ameaçadora e severa são serenas um pouco mais barulhentas é verdade mas só por seu zumbido adeptas ferrenhas do silêncio e da discrição circunspectas ao extremo sim as vespas voam quase silenciosas os cupins competem com as formigas em discrição e trabalho mas preferem não interromper seus afazeres as lagartixas pensam em silêncio fazendo silêncio as aranhas nas suas teias esperam suas presas silenciosas ou descansam enfastiadas ou satisfeitas na modorra da tarde quente o vento pode-se dizer que está virtualmente ausente há tempo a luz violenta do sol aumenta a temperatura o calor diminui o ritmo e metabolismo dos seres que precisam economizar energias duma toca sai um rato que encontra uma voraz víbora a qual espreitava a toca dele há horas mas infelizmente para ela não foi desta vez que conseguiu saciar sua fome urgente ela bem que tentou abater o rato com todos os recursos de que a natureza a dotou mas foi inútil numa fração de segundos o veloz roedor desapareceu não dando a menor chance para a serpente inocular seu letal veneno o que ela não deixou de fazer quando com segundos de atraso deu seu quase sempre certeiro bote mas dessa vez seu veneno foi depositado na areia para sua enorme frustração terá que continuar esbelta por pelo menos mais meio dia ou com alguma sorte um pouco menos as aranhas nesse ambiente árido e sem vento têm que usar outras estratégias para atrair suas presas a teia é eficaz mas não para a maioria dos aracnídeos que habitam esse lugar tem as aranhas que vivem no solo e nos buracos tem aquelas que habitam as árvores em seus troncos e galhos ocos ou reentrâncias e outras que vivem e dormem camufladas ao relento mesmo que todas as espécies de aranha da região tenham seu poder de camuflagem algumas espécies adotam apenas algumas características ou cores outras capricham um pouco mais no disfarce com características mais marcantes como algumas semelhanças no design do ambiente tais como folhas troncos e galhos de árvores e há as que adotam camuflagem total ou quase com design que imita com fidelidade detalhes do habitat com todas as suas cores tons e subtons lagartos lagartixas e iguanas camuflados também mudos e concentrados vigiam com olhos fixos suas presas locomovem-se com desenvoltura por troncos galhos solo pedras paredões de pedra e até mesmo dentro d’água quando chove o que acontece raras vezes com sutileza eles se esgueiram mal tocam suas patas nas mais variadas superfícies caçadores implacáveis sondam toda a área antes de fixar seus olhos numa potencial vítima os camaleões passeiam tranqüilos nos galhos com os tons verdes das folhas como camuflagem moscas mosquitos abelhas besouros e outros insetos em raro período úmido sobrevoam arbustos que esperam por esse momento anos a fio e saboreiam as frutas adocicadas e abertas pelos pássaros os camaleões só têm que esperar as moscas se aproximarem e esticar suas longas línguas até suas presas a camuflagem é um recurso bem sucedido mas há predadores que desenvolveram a capacidade de discernir o ser camuflado do ambiente os lagartos e algumas espécies de camaleões por exemplo eles mesmos altamente camufláveis que caçam espécies de insetos que têm disfarce quase perfeito as lesmas verde-musgo saboreiam o musgo dissimuladas correndo risco de serem devoradas por indivíduos da mesma espécie que não sabem discernir musgo ou lesma pequenos lagartos-verdes voadores planam nos ares repletos de insetos se deliciando com essas iguarias vivas mas petiscos mesmo são no que se convertem os próprios lagartos voadores como que do nada aparecem pássaros de penas douradas em rápidas e sinuosas acrobacias aéreas magníficas caçadoras do ar essas aves chegam silenciosas caçam em silêncio e vão embora como chegaram no mais completo mutismo suas penas douradas brilham ao sol com nuances furta-cor retiram-se em revoada em visão estonteante uma pena de um deles cai e flutua irradiando um brilho ofuscante por longos minutos enquanto se afastam em vôo coordenado parece que um vazio cai sobre o lugar como um manto pesado e escuro depois de uma repentina e efêmera visão do paraíso alta madrugada a lua cheia brilha e ilumina o deserto a sua luz incide sobre as dunas projetando sombras irregulares o luar invade os sulcos desenhados pelo vento na areia e nas rochas tanto as pedras quanto a areia brilham com o reflexo dourado do luar são grãos de areia ou pequenos pedaços de rocha cintilantes sombras se alongam disformes fantasmagóricas montes de pedras parecem se erguer como seres animados suas sombras lembram antigos animais agigantados mesmo os próprios montes de areia sob a penumbra lembram estranhos seres inertes hieráticos suas sombras reiteram sua condição visualmente híbrida sob a luz do sol não passam de montes de pedra ou de areia embora sua presença ao dia já intrigue nas sombras da noite se transformam em emblemáticas formas as quais lembram seres de um suposto passado que repousam placidamente na eterna noite do esquecimento depois de reinarem sobre a terra e sobre todos as formas de vida depois duma existência longa e vitoriosa e a glória dos dias passados com seu violento ímpeto de vencer e imperar descansam na ambígua massa mineral fósseis virtuais que em seu silêncio eterno aparentam infelicidade com sua atual condição como se fossem vítimas dum castigo imposto por um ser ou força superior parecem seres que depois de uma vida gloriosa resistem a um destino incógnito e desinteressante que a noite com sua implacável lua cheia e suas dramáticas sombras desvela impiedosa resignados em seu pétreo ou arenoso ocaso e disfarce devem detestar a noite que sem qualquer pudor parece sorrir sarcástica a cada nuance ou lance da luz e da sombra na modorra da tarde cigarras tecem seu canto transcendental litania minimalista que domina o espaço torna-o cheio denso quente e funde-se a ele a ponto de tornar-se o próprio espaço como um órgão numa igreja o som invade o espaço adensa-o com seu timbre cheio instaurando uma atmosfera mística a luz do sol brilha ofuscante acentuando a densidade do ar ou antes o contrário alguma leveza letárgica as cigarras com seu canto etéreo saturam o ambiente elevando a já alta temperatura as serpentes noturnas descansam em suas tocas fazendo a digestão das refeições da noite passada enrodilhadas em si mesmas e em sonhos gulosos e viperinos a ladainha erótica das cigarras mal chega às tocas escuras e frescas das serpentes é uma doce trilha sonora dos seus sonhos povoados de banquetes regados de letais venenos grandes petiscos sobretudo ratos grandes ratos ratazanas ratos de todo o tipo num pantagruélico e glamuroso jantar sonhos gordos numa crescente comilança a algazarra das cigarras lá fora se acentua lá dentro sonhos obesos os ratos crescem engordam incham a música se intensifica as cobras se remexem excitadas preguiçosas em seu sono profundo repondo energias para uma noite igualmente intensa enquanto as cigarras vão descansar suas gargantas poderosas mas esgotadas as serpentes saem de suas tocas excitadas voam com seus botes velozes e certeiros como lanças venenosas sobre suas incautas vítimas enquanto as cigarras sonham com guitarras envenenadas a rã do deserto é um paradoxo é um anfíbio e os anfíbios todos sabem passam grande parte de sua vida na água mas esta rã notívaga dorme o dia inteiro em toca fresca protegendo-se do calor infernal e à noite sai para caçar insetos e absorver o orvalho sob as baixas temperaturas desérticas sua pele sensível e porosa retém o orvalho e um dispositivo biológico regula a quantidade de água que deve ser retida caçam os insetos que descansam escondidos embaixo da areia suas patas têm sensores que detectam e desenterram grilos cigarras escaravelhos e outros besouros baratas-do-deserto moscas mosquitos mutucas e outros petiscos apetitosos caçam até cerca de sete horas da manhã quando o sol ainda está ameno as últimas gotas de orvalho começam a cair e os insetos começam a sair debaixo da areia momento de festa com milhares de rãs caçando milhões de insetos fechando a noite num glorioso grand-finale a felicidade só não é completa porque aparecem as perigosas víboras-vermelho-intenso que vêm banquetear-se com as deliciosas rãs milhares dessas serpentes vorazes esperam essa hora as rãs têm muito pouco tempo para caçar o maior número de insetos possível nesta corrida contra o tempo as espertas rãs levam a melhor a maioria escapa pulando bem alto mas algumas infelizes não escapam de virar sobremesa das víboras eu disse sobremesa: as víboras não podem contar a priori com um lauto café-da-manhã de rãs antes devem se abastecer o quanto possível as rãs são realmente espertas e pulam muito alto só algumas víboras felizardas têm a sorte e o prazer de se deliciarem com esse petisco as outras ficam olhando frustradas as rãs fugindo olimpicamente ruminando despeitadas ódio das sortudas colegas e óbvio das rãs mas prometendo a si mesmas que da próxima vez elas não vão deixá-las escapar a mosca-cor-de-cobre passeia ao sol assim como quem não quer nada mas quem a conhece sabe que qualquer passeio dela não tem nada de despretensioso dentre as moscas só a terrível mosca-cor-de-cobre brilha com a luz do sol nuances de vermelho metálico furta-cor tão infinitas quanto a intensidade da luz do sol que incide de maneira regular mas com infinitas variações produz um efeito hipnótico em quem lança uma mínima olhada sobre esse inseto qualquer animal vertebrado ou invertebrado entra em estado de momentânea inconsciência que dura pelo menos o tempo suficiente para que apareça um enxame de milhares de moscas se a vítima for um animal de grande porte ou apenas algumas moscas se for um pequeno animal ou só a mosca hipnotizadora se a vítima for só um inseto a mosca que hipnotiza emite um sinal para as outras moscas avisando-lhes qual o tamanho da presa e com essa informação aumenta ou diminui o número de candidatas a desfrutar a refeição a intensidade do sinal varia do mais agudo quando a presa é um pequeno inseto nesse caso o aviso também quer dizer não se aproxime então a vítima é consumida apenas pela própria mosca ao mais grave quando a vítima é um animal de grande porte e há comida suficiente para milhares delas a maneira como devoram não varia de vítima para vítima é sempre do mesmo jeito elas sugam sem parar com sua língua em forma de canudo o animal abatido até não restar mais nada nadinha dele quando são convocadas elas têm que competir desde o momento que partem rápidas e ágeis as moscas adultas enrijecem seus corpos abrem suas grandes asas e já impõem seu poder sobre as demais competidoras que estão próximas essa mosca poderosa ainda terá que competir com muitas outras do mesmo nível assim como as mais fortes que ela e as mais fracas competirão entre si são vários níveis que abrangem as mais fortes das mais fortes as médias das mais fortes as fracas das mais fortes assim como com o nível médio e o fraco e seus subníveis as que sobram no fim de cada subnível são rebaixadas para um nível inferior os animais as temem ao menor sinal da presença ou proximidade delas abaixam suas cabeças fecham seus olhos e ficam parados assim nada acontece com ódio no coração as moscas afastam-se à procura de uma vítima incauta as moscas-cor-de-cobre detestam ser confundidas com as moscas-cor-de-cobre-e-pretas que se camuflam parecendo aquelas para não serem predadas pelas rãs camaleões e lagartos em geral elas têm apenas um detalhe que as diferencia das moscas-cor-de-cobre: uma pequena mancha preta no dorso que as impede de ter um brilho tão intenso quanto as moscas-cor-de-cobre ninguém entre os animais por simples pavor sabe identificar a diferença entre a mosca-cor-de-cobre e a mosca-cor-de-cobre-e-preta exceto as moscas-cor-de-cobre que caçam aquelas impiedosamente as moscas-cor-de-cobre-e-pretas se alimentam de animais em decomposição inclusive os ossos elas vagam erraticamente pelo deserto à procura de carniça uma bola de fogo invade a atmosfera e antes que caia no chão explode em infinitos pedaços de tamanhos variados mas nada desprezíveis depois da explosão do meteoro gigante os pedaços em fogo se projetam no ar produzindo um espetáculo visual assombroso na noite escura de lua minguante os animais noturnos às voltas com sua vida cotidiana correm assustados para os seus esconderijos e tocas é um alvoroço e um desespero que ninguém esperava alguns animais espertos e oportunistas aproveitam o clamor e a bagunça geral para caçar animais aterrorizados e desatentos como as cobras-negras-da-noite esta espécie de serpente que se esgueira camuflada nas sombras da noite e da madrugada enxerga muito bem e sua pele e língua possuem membranas que detectam a proximidade de potenciais presas a metros de distância camuflada de noite a gulosa serpente se arremessa pelos ares planando alguns metros sobre a presa sua rapidez e capacidade visual impossibilitam à vítima qualquer chance de defesa ou tentativa de fuga a sagaz serpente cai certeira em cima da vítima enrodilhando-se nela em segundos e em seguida matando-a por asfixia a coruja-serpentária parece também não se importar com o alvoroço e assiste estóica à cena da cobra-negra-da-noite devorando sua vítima nesse caso um rato a coruja que não é boba nem nada e caçadora implacável com a maior calma resolve fazer dupla refeição serpentes são sua principal dieta mas roedores como ratos e coelhos não escapam do seu apetite com rapidez extraordinária ela voa sobre a cobra-negra-da-noite que ainda devora o rato numa fração de segundos ela tira o rato da boca da cobra antes que esta o engula e deixa-o já inconsciente de lado rapidamente espezinha a serpente que percebendo o risco que corre e sem poder se defender tenta desesperada escapar enquanto a coruja apressa o pisoteio sem ao menos olhar para a presa parece apenas enxergar o vazio em alguns minutos ela saboreia a dupla refeição sob total silêncio a galinha-preta-do-deserto espreita incógnita imersa nas sombras da madrugada ela se alimenta dos restos de comida dos predadores quando eles vão embora a galinha-preta-do-deserto vai saborear os restos das iguarias as moscas-cor-de-cobre-e-pretas já estão sobre uma carcaça há muito tempo e em grande número o que irrita a galinha-preta-do-deserto ela tenta exasperada afastar as moscas-cor-de-cobre-e-pretas e volta-se para o enxame em revoada protestando com um agudo cacarejo que ecoa pela noite desértica como se um espesso tecido negro fosse rasgado um som metálico que irrompe o ar seco anunciando a madrugada e despertando a coragem nos animais entocados por medo da explosão do meteoro invadindo violentamente seus tímpanos e cérebros em movimento instantâneo espontâneo e simultâneo os animais depois de terem passado longos minutos paralisados saem das tocas exceto os diurnos que dormem profundamente e apenas sonharam com a explosão os cachorros-amarelos-do-deserto acabam de chegar de uma longa e distante caçada os filhotes esperavam ansiosos e famintos por essa hora protegidos numa espécie de creche sob os rigorosos cuidados de uma cadela-babá que já não agüentava mais a fome e a ansiedade dos filhotes os quais latem desesperados com sons agudos e às vezes lancinantes o que desperta nas mães e pais extenuados sentimentos de propriedade e proteção quase adormecidos por tanta fadiga os pais identificam seus filhotes pelo cheiro e os ganidos depressa regurgitam nas suas bocas famintas nacos da carne da caça famélica a cadela-babá também recebe seu quinhão se instala um clima de regozijo no ar acentuado pelo canto transcendental das cigarras a pelagem amarela e curta dos cachorros tem um tom muito semelhante à da areia se vistos à distância parece que é areia em inusitado movimento depois da refeição todos adultos e crianças se refestelam na areia morna do fim da tarde sob a sombra de um monte de pedras muitos pais e os filhotes brincam correndo atrás uns dos outros ou se mordendo de leve aquelas brincadeiras que os cães sempre fazem e os filhotes repetem como exercícios para futuras caçadas eles caem roçando seus pêlos na areia em prazeroso banho os adultos mais preguiçosos apenas observam exauridos da caçada e da longa jornada pássaros vermelhos passam com grande alarido em vôo rasante a vários metros de altura os cachorros se agitam e mesmo satisfeitos por instinto saem correndo atrás das aves com enorme alvoroço elas percebem do alto o latido feroz dos cães-amarelos-do-deserto que frustrados olham com inveja o vôo enérgico dos pássaros o vento finalmente dá o ar de sua graça de início um sopro suave acaricia os corpos dos animais e levemente calmo se manifesta em pequenas ondas alguns animais se incomodam não vêem nisso bom sinal outros como o gambá-vermelho-e-preto continuam caçando e brincando com aparente tranquilidade o vento ainda permanece calmo mas de maneira quase imperceptível vai aumentando sua intensidade as aves ainda estão no céu aproveitando as correntes de ar quente algumas partículas de areia pairam no ar ouve-se o grito histérico de uma ave incógnita o vento volta à carga aumentando ainda mais sua intensidade aos poucos as formigas-vermelho-metálico resolvem se recolher em seu formigueiro um pouco mais cedo há animais que ainda suportam o vento que só aumenta e muitos continuam caçando ou se divertindo distraidamente sem perceberem que o tempo passa e que o vento sopra cada vez mais forte alheios aos apelos da natureza não se dão conta do risco que correm finalmente os mais relapsos sentem o drama e começam a se recolher os maiores ainda conseguem se arrastar fixando com firmeza suas patas ao chão ou melhor à areia que parece sumir dos seus pés os animais menores sucumbem arrancados do solo pela força da ventania que em pouco tempo se transforma numa tempestade de areia os animais que não foram soterrados são suspensos carregados por um redemoinho são muitos animais de pequeno e grande porte tantos que se chocam uns contra outros e ainda com vida tentam fazer sua última refeição serpentes que enlaçam pássaros que bicam lobos que mordem com ferocidade outros animais em vão corpos se chocam com violência no ar envoltos em densa nuvem de areia os bichos se dilaceram o vento cada vez mais forte a areia torna-se massa compacta milhares de corpos esquartejados o sol brilha na areia onde jazem os pedaços dos mais variados animais restos mortais amontoados e misturados de uma fauna variada vê-se que o deserto não é assim tão deserto cabeças das raras raposas-cinza-do-deserto junto a corpos de escorpiões agigantados serpentes mortas mas enroladas em mulas-do-pescoço-comprido-do-deserto agora sem cabeça as misturas são infinitas o vento teve tempo suficiente para arquitetar os mais absurdos acasos e bizarrices os animais sobreviventes saídos de suas tocas depois da tempestade incrédulos mas felizes com tamanha mortandade refestelam-se com o mega-banquete das vítimas do vento o sangue tinge a areia animais de todas as espécies e de todas as partes do deserto acorrem vertebrados e invertebrados mamíferos ofídios aracnídeos insetos e aves as mesmas espécies vivas devoram as mortas o sol a pino os animais absortos saboreiam os cadáveres sem prestar atenção no que se passa ao seu redor abutres brigam com chacais pela posse de uma carcaça que já pertence a um tigre e seus filhotes nos dias subseqüentes com o apodrecimento dos milhares de cadáveres que ainda não tinham sido devorados animais carniceiros continuam participando do banquete mas quantos animais! quantos abutres condores e urubus quantos diferentes tipos de moscas e mosquitos ao contrário do que muitos pensavam a intensidade do fluxo de animais só aumentou fluíam carniceiros de todas as paragens sendo as aves os que vinham de lugares mais longínquos e claro os insetos que pareciam vir com o vento mas qual vento se aparentemente talvez cansado ele parou de soprar por completo ou quase? depois de toda essa destruição o vento se ausenta do deserto o sol e o calor se impõem impiedosos mas parecem não incomodar os animais estrangeiros por enquanto há comida para uma multidão de carniceiros os dias vão passando o sol reina escaldante e inclemente muitos animais se retiram aos seus lugares de origem na ânsia de comerem o que podem e o que não podem muitos morrem de congestão e insolação ali mesmo sem qualquer força para continuar outros caem fatigados a caminho de casa no meio do trajeto ou até mesmo quase chegando o vento passeia veloz pelo hospital semi-escuro a lua-cheia brilha no negrume e sua luz dourada projeta sombras disformes e alongadas nas grandes alas e quartos o vento perambula dentro do hospital lá fora tudo calmo como se ele não existisse passa às vezes suave às vezes veloz sobre as sombras e escombros ele controla sua velocidade sutilmente e modula seu som de acordo com a acústica de cada ambiente o vento se cansa de ficar lá fora as sombras se estendem imagens pontiagudas em meio ao clarão dourado da lua cheia lá fora o mato se curva assustado ante a passagem inesperada e furiosa do vento ríspido ele volta se recolhe para dentro do hospital esculturas colossais habitam o jardim banhadas pela luz dourada da lua no meio de grande praça circular cercada de arbustos há a estátua de uma naja gigante enfrentando um leão de dimensões correspondentes às dela o leão parece emergir das sombras com olhos expressivos sua juba parece se movimentar com os reflexos dourados do luar a naja mira o leão com olhar não menos desafiador ou ameaçador o luar derrama sua luz dourada sobre a cena projetando sombras alongadas e dramáticas que se prolongam adquirindo uma quase independência visual como se fossem outros seres que de vivências secundárias adquirem vida própria uma outra estátua num canto quase escuro do jardim: a representação colossal de uma aranha negra de pernas muito longas e em posição de ataque sua sombra se esparrama deformada por pedras brancas irregulares e buracos em pavimento deteriorado outra estátua: a de um grande dragão lutando contra uma enorme serpente o dragão está em posição de ataque e apoiado nas duas pernas traseiras parece prestes a atacar com as garras das patas dianteiras de sua boca enorme com dentes afiadíssimos sai uma longa língua dividida ao meio como a dos répteis seu focinho é muito grande como o de um jacaré no meio do seu corpo do focinho à cauda há saliências cônicas enfileiradas com o tamanho e o volume crescendo a partir do focinho até atingir os pontos mais altos na região dorsal para depois ir diminuindo até a ponta da cauda a cobra em posição por assim dizer clássica enrodilha-se começando da cauda e se arma a partir da metade do seu corpo em posição de bote sua boca aberta exibe dentes longos e afiados repletos de veneno em cada lado da sua cabeça há uma protuberância simétrica como chifres outra estátua colossal representa uma águia que tenta espezinhar uma serpente a águia nem olha para sua presa apenas parece mirar com frieza o nada enquanto seus pés pisoteiam impiedosamente a cobra que apesar do desespero parece enfurecida e inconformada com seu inglório destino o vento passa leve pelas estátuas e esquadrinha seus detalhes suas mínimas reentrâncias durante longo tempo ele fica por ali como se estivesse examinando com meticulosa atenção cada curva cada mínimo movimento do sinuoso desenho do bronze material de que são feitas as esculturas sua longa estada produz um som metálico resultado de sua minuciosa apreciação a luz dourada da lua cheia brilha fraca nesse momento: uma nuvem encobre parcialmente o satélite o som metálico se intensifica torna-se mais agudo o vento passeia cada vez mais rápido sobre as esculturas mas é uma rapidez algo suave de alguém que observa curioso ou que não consegue entender e tenta decifrar certo código que não domina ou ainda alguém muito ocupado que interrompe de repente seus afazeres cotidianos para se distrair com alguma coisa que não tem uma finalidade prática depois de um longo tempo ele parte sem deixar vestígios como se nunca tivesse passado por ali o céu forrado de estrelas o orvalho caindo sobre as plantas o vento desliza com delicadeza as plantas se agitam e se curvam reverentes com a sua passagem a lua cheia se reflete no lago dos jacarés que descansam nas suas águas tépidas pássaros fazem seus ninhos no sótão do antigo hospital a fúria do vento junto com a chuva destelhou grande parte da construção cegonhas e pelicanos escolheram o que restou do velho hospital como local de procriação e nidificação é uma algazarra sem fim uma balbúrdia que só termina quando os filhotes estiverem crescidos tempo suficiente para voar e viverem independentes dos pais um ano depois voltam os filhotes para procriar assim como seus pais e avós que ainda acasalam eles terão que arranjar um parceiro fiel até a morte em maio quando o vento frio do sul começa a soprar as últimas aves partem a maioria já bateu as asas em abril quando uma leve brisa vinda do sul prenuncia o frio depois que as últimas aves partem reina o silêncio ou melhor o som insidioso do vento sobre a vegetação e as ruínas do hospital minando-o e deteriorando-o sem interrupção e piedade pequenos lagartos passeiam pelas paredes quase que totalmente tomadas pelo musgo e por todo tipo de mato uma variedade enorme de insetos povoa e sobrevoa as ruínas e os imensos jardins agora em quase completo estado selvagem ao contrário de antes a arquitetura ocupa posição cada vez mais coadjuvante espécie de suporte para a natureza como velhos navios afundados no oceano muitos cômodos do velho hospital estão completamente desaparecidos tomados pela fúria do mato grosso os fortes troncos de unhas-de-gato se cruzam sufocando as paredes fragilizadas pela umidade a floresta toma conta do que antes era seu e que tornou-se uma grande clareira um vazio na paisagem a natureza retoma seu pedaço imprime seu sopro de vida e anuncia novos ou antigos tempos as formigas abelhas e cupins trabalham com o afinco de sempre sem se importar com o que acontece ao seu redor para elas a vida segue a mesma apenas há mais lugar para seus infinitos formigueiros colméias e cupinzeiros o vento nunca os esquece bem o vento não esquece nada nem ninguém a todos contempla a muitos destrói e é testemunha da morte ou desaparecimento de tudo não cabe ao vento lembrar ou esquecer
Palavra em Transe - tela 7 (2007/2008)
Acrílica s/ tela
318,0 cm (diâmetro)

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