sábado, 13 de dezembro de 2008

Para quem se frustrou com a Bienal esvaziada, a Paralela 08 pode dar uma boa idéia do que está sendo produzido por vários dos mais relevantes artistas contemporâneos brasileiros. Composta por artistas do cast de algumas das mais famosas galerias de São Paulo e com curadoria de Rodrigo Moura, essa exposição, assim como outras coletivas off-Bienal, cumprem tanto a função, em menor escala, de exibir a produção contemporânea sob diferentes pontos de vista, quanto de ocupar, insolitamente, o vácuo deixado por aquela.
O livro “De Perto e de Longe” com entrevistas de Claude Lévi-Strauss ao jornalista Didier Eribon, é o ponto de partida para uma reflexão, segundo o curador explica no programa da exposição, sobre “a idéia de lugar na produção contemporânea”. A partir desse conceito, a curadoria faz uma abordagerm da arte contemporânea brasileira através de diálogos ou aproximações conceituais, independentemente do suporte e da época em que foram concebidos os trabalhos expostos.
Assim, o misto de escultura, objeto e instalação de Jac Leirner, da década de 90, feito de caixinhas para vômito subtraídas de aviões ou uma série de fotos de Claudia Andujar, da década de 70, de passantes na Rua Direita, tradicional rua de comércio popular do centro de São Paulo, aproximam-se ou dialogam com artistas geralmente associados ao que se convencionou designar “estética da gambiarra” como Marcelo Cidade, Alexandre da Cunha e Rodrigo Matheus (artista que apresenta sedutores quadros feitos a partir daqueles antigos cardápios que eram pendurados nas paredes de bares) que trabalham com os resíduos do meio urbano e subprodutos da cultura de massas, os quais, por sua vez, conversam com artistas que têm trabalhos que fazem referências à cultura popular, como Rochelle Costi, ou mesmo estabelecem estreito diálogo com o universo popular, como Marepe e Efraim Almeida. Os pássaros de madeira deste artista ganham e exploram o espaço, assim como os delicados desenhos de aves de Laura Lima emoldurados e dispostos em movimentos diagonais sugerindo uma revoada ou, ainda, a projeção aérea do trabalho de Leirner que indica a origem do material do qual é feito.
O conceito de lugar ou espaço é pensado pela curadoria tanto em termos de concepção artística, reflexão já inerente ao próprio trabalho e poética do artista, quanto à sua inserção no espaço expositivo que o redimensiona e traz à tona conceitos afins como tempo, trânsito, circuito, arquitetura, viagens, movimento, mutações, fusões, simultaneidade. Três elementos da natureza estão presentes de maneira direta ou indireta nos trabalhos: Terra, Ar e Água. Por estes elementos se desenvolve a comunicação humana com todas as conseqüentes intervenções que vêm sendo efetuadas pela cultura. O specific-site se funde, então, ao objeto criando instigantes associações e aproximações. Logo abaixo e fazendo contraponto ao trabalho de Jac Leirner se espalha pelo chão algo que aparenta pedrinhas, não fosse um olhar mais atento e, considerando o aspecto do espaço expositivo (meio rústico), poderiam ser confundidas com... pedrinhas mesmo. Mas não. São o trabalho de Débora Bolsoni, representações de porcelana das populares pipocas salgadas ou doces.
Logo adiante a foto documental dá o tom, representada por Marcos Chaves, Pedro Motta e Rosângela Rennó. Que se aproximam de um grupo composto por Rosana Palazyan, Leda Catunda, Erika Verzutti, Sara Ramo e Adriana Gallinari. São artistas que de maneiras diferentes refletem sobre a sensibilidade feminina e, ao mesmo tempo, cada uma com sua linguagem, abordam questões como organicidade da forma, chegando a novas interpretações da abstração. Seja pela pintura que ambiciona a tridimensionalidade em Leda Catunda, seja com os desenhos de Adriana Gallinari, que dialogam com a escultura que se funde ao desenho de Erika Verzutti, que pode se identificar com os desenhos de Rosana Palazyan, que utiliza fios de cabelo. Todas guardam certa proximidade com as fotos de Sara Ramo, que têm caráter algo performático, mas dessa ação restam apenas seus indícios ou resquícios corporificados no registro fotográfico. O modus operandi da intervenção artística em espaço íntimo, nesse caso o banheiro, obedece a um método específico que traduz a condição feminina na sensibilidade com que se apropria e organiza os objetos de higiene pessoal.
A idéia de organicidade também está nas fotografias de Marcos Chaves e Pedro Motta: a intervenção humana na natureza ou as maneiras como a cultura a humaniza através de soluções arquitetônicas que incorporam a vegetação ao desenho de moradias e paisagismo urbano dentro de uma tradição popular brasileira. São trabalhos que dão seguimento e potencializam as idéias da curadoria, imbricando em outros questionamentos ao mesmo tempo em que se comunicam com os artistas que se referem a ou se apropriam de elementos da cultura popular. Também eles dialogam ou se aproximam de Carla Zacagnini, a qual, com o vídeo intitulado “e pur si muove” (referência à famosa frase de Galileu Galilei), reinterpreta o gênero paisagem com uma câmera de vídeo fazendo um travelling de 360 graus e reforçando a idéia de circularidade, circulação e vertigem. Ali perto está o interessante vídeo de Milton Marques que exibe um cent de dólar em perene movimento circular num premonitório comentário sobre os descaminhos do capitalismo avançado.
No âmbito da fotografia documental merece especial atenção o trabalho de Rosangela Rennó. Fiel ao seu repertório, a artista se apropria de fotos de outros fotógrafos (muito bem feitas, diga-se) e de seus relatos que traduzem a surpresa e a emoção ao captarem redemoinhos em diferentes partes do Brasil. O vento em movimento circular e vertiginoso que arrebata e espanta o olhar com sua força centrífuga. É um dos mais interessantes trabalhos da exposição e um dos que captam as idéias de movimento, trânsito, e viagens e relações entre cultura e natureza com sutileza e poesia.
Para entender o espírito da exposição não há uma ordem espacial a ser seguida. Numa leitura semiótica (embora algo démodé não resisto à tentação) os conceitos de trânsito e circulação estão representados de maneira clara na exposição, por exemplo, através de ícones como o carrinho de supermercado de duas faces de Marcelo Cidade, do trem na vídeo-instalação de Marcellus L., nos pássaros de Efraim Almeida e Laura Lima, nos barquinhos de papel da instalação e desenho de Sandra Cinto, inspirada na clássica pintura de Théodore Géricault “A Balsa da Medusa”; símbolos como specific-site de Renata Lucas, que abre a exposição, com o carpete da entrada dobrado sugerindo ondas, no trabalho de Jac Leirner em que, através das caixinhas encontradas em aviões, estão implícitas as viagens, o vídeo da moeda de Milton Marques, janelas e portas como nos trabalhos de Nicolás Robbio e Lúcia Koch, no jardim suspenso de Brígida Baltar, de nas bandeiras de Alexandre da Cunha e Antônio Dias e índices como nas pipocas de Débora Bolsoni e na grande tela, misto de pintura e instalação, de Thiago Rocha Pitta que vai sendo manchada de cristais de sal que caem de um calha com o passar do tempo, das especiarias (cravo e pimenta) da instalação de Ernesto Neto, que podem remeter aos descobrimentos a partir dos séculos 15 e 16. Mas não só eles.
As bandeiras dos dois artistas acima mencionadas são uma irônica observação de como se transmutam valores ao sabor dos ventos ideológicos que cada época cultiva, com seus símbolos cambiantes e transitórios. No caso de Alexandre da Cunha, elas, que são feitas de lenços falsos das grifes-ícones da alta costura que podem ser encontrados no comércio popular da rua 25 de Março, numa ironia ao culto histérico às grifes, ainda que sob o signo da pirataria, se contrapõem à bandeira vermelha de Antônio Dias que à época em que foi concebida (década de 70) carregava forte conotação política, comentário ao terror do autoritarismo (o sangue) e resistência à ditadura militar. Cada época carrega as bandeiras que merece? Entre esses trabalhos paira a fatídica moedinha de Milton Marques... Antonio Dias, por sua vez, dialoga com Artur Barrio com suas fotos documentais de cadáveres encontrados na periferia de Belo Horizonte, mortos pelos aparelhos de repressão da ditadura militar ou pelos sinistros esquadrões da morte. Ou de seus happenings-performances com suas trouxas manchadas de sangue, em lugares igualmente periféricos, com claras referências aos acontecimentos acima mencionados. A escultura de André Komatsu parece encarar as fotos de Artur Barrio num diálogo que não se restringe apenas à exposição. Há muitos pontos em comum entre os trabalhos de Barrio e de Komatsu, como o gosto pelo precário, o aleatório e o acaso.
Como (não) classificar os suportes é questão fundamental. Conforme já me referi ao trabalho de Jac Leirner, torna-se, muitas vezes, difícil especificar qual é o suporte determinado de certos trabalhos por causa de seu DNA conceitualmente híbrido, cross-over de idéias que é próprio do imaginário contemporâneo e de muitos artistas. Os mapas afetivos de Ricardo Basbaum fazem comentário pertinente em relação a esse aspecto ao mesmo tempo em que dialogam com os specific-sites presentes na mostra e com o filme de Rivane Neuenschwander. O termo specific-site tem sido usado de diferentes maneiras e interpretações pelos mais diferentes artistas das mais variadas tendências. Podemos designar genericamente specific-site como uma intervenção artística num espaço expositivo.
Na mostra esse gênero aparece sob várias configurações. A intervenção de Nuno Ramos no piso do espaço expositivo, uma reinterpretação do universo do gravador brasileiro Oswaldo Goeldi esculpida no chão com o baixo relevo preenchido com óleo, é um interessante exemplo de hibridização e da dificuldade de classificar certos trabalhos. Revisita a um gênero clássico, a gravura, tem DNA de pintura ou de specific-site. Ah! Quase me esqueci, ainda tem certo aspecto escultórico. Entendeu? Irredutível em sua individualidade artística, o trabalho valoriza e potencializa os suportes a que se refere enquanto escapa escorregadio às classificações. Já o poético trabalho de Nicolás Robbio não deixa dúvidas: trata-se de um specific-site, mas ao mesmo tempo se configura desenho com a projeção em retro-projetor das janelas e portas que existiam no espaço expositivo vislumbradas apenas pela luz solar que entrava pelas suas frestas. Destaca-se o interessante trabalho de Lúcia Koch: quatro grandes janelas vazadas de madeira com rebuscados desenhos ornamentais que ao mesmo tempo dividem, permitem comunicar ou entrever recintos e os trabalhos artísticos que povoam o espaço expositivo. Muito coerente com o seu trabalho, a artista avança em sua pesquisa com materiais “vazados”, como treliças, que exploram conceitos de transparência de diferentes maneiras, no limiar entre o objeto artístico e a divisória industrial.
O cinema potencializa idéias de câmbio, movimento e circulação através dos trabalhos de Cao Guimarães, Rivane Neuenschwander e Raquel Garbelotti, que por sua vez dialogam com as pipocas de Débora Bolsoni (já imaginou cinema sem pipoca?). No trabalho de Cao Guimarães o conceito de lugar é visto de maneira irônica e bem-humorada. Um filme com dois meninos brincando é projetado ao mesmo tempo em que um pintor de paredes pinta a tela. A simultaneidade cria uma estranheza divertida e nos segura na sala. O filme nos faz refletir sobre a representação e suas camadas, da qual o espectador é parte importante, e as relações de interdependência entre aquelas que podem proporcionar, através de um jogo de possibilidades e do realce da transparência (vide o trabalho de Lúcia Koch) da imagem, a irrealidade e a ilusão embutidas em cenas aparentemente banais. O mesmo descompromisso que emana das cenas dos garotos brincando e do homem pintando a tela, e sua conseqüente fusão, reforçam o poder sedutor da imagem que depende, em última análise, da cumplicidade descompromissada do espectador, numa suspensão temporária da realidade, para criar um amálgama de valores dos quais a arte depende para se legitimar. O trabalho de Rivane é um filme que reproduz os vários desenhos ou mutações do mapa mundi desde a Pangéia até adquirir a configuração atual. A artista, que utiliza, com certa frequência, materiais orgânicos e insetos que a “ajudam” a realizar seus trabalhos, desta vez usa carpaccio para fazer os mapas e formigas que devoram a carne, as quais, com a aceleração do filme, conferem aparência algo granulada, dando a ele certo aspecto envelhecido. Rivane engana o nosso olhar, muitas vezes seus trabalhos não aparentam ser o que são. Muito bom. Raquel Garbelotti comparece com foto de paisagem intitulada “Clareira” e instalação em que se apropria de filmes e vídeos criando um arquivo de imagens que aludem a conceitos de territórios contemporâneos e representação dos quais sobressai o filme ”Notre Musique” (2004) que o cineasta francês Jean-Luc Godard fez em Sarajevo.A arquitetura, já mencionada, ganha destaque tanto pelos specific-sites, que amplificam e redimensionam conceitualmente o espaço, quanto pelas fotos de Mauro Restiffe, Lina Kim, Rochelle Costi e Rubens Mano, os quais com diferentes enfoques abordam questionamentos estéticos que podem aproximar este meio da pintura, desenho, performance, design e, claro, de reflexões acerca do estatuto da arquitetura e, em conseqüência, da arte para a compreensão da cultura e da história. Um dos participantes da Bienal, a boa foto de Rubens Mano ganha especial significado pelo caráter premonitório (a foto é de 2002) e comentário visual sobre a polêmica exposição, além de, com a referência, identificar o DNA da Paralela. A emblemática foto fecha a Paralela 08 com foco ou chave algo irônica
Trabalhos (de cima para baixo):
1. Alexandre da Cunha
2. Rodrigo Matheus
3. Jac Leirner
4. André Komatsu
5. Brígida Baltar
6. Artur Barrio
7. Rosângela Rennó
8. Milton Marques
9. Rivane Neuenschwander
10. Ernesto Neto
11. Nuno Ramos
12. Cao Guimarães
13. Lucia Koch
Paralela 08 - "de perto e de longe"
Liceu de Artes e Ofícios
Rua João Teodoro, 565 - Luz - São Paulo - SP
Tel.: 7040-1743
28.10.08 / 07.12.08
terça - sexta 12 às 18h / sábado e domingo 10 às 18h

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