0 comentários quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Os “Corredores Suspensos”(2006-2008) da artista espanhola Cristina Iglesias desenham trajetos através de textos escritos em grandes painéis de ferro doce (ferro puro, maleável e resistente à corrosão) trançado que, agrupados, formam labirintos. Esses painéis são vazados e evidenciam um trabalho artesanal impecável e de fino acabamento. Neles, a artista reproduz descrições de lugares fantásticos retiradas da obra de escritores como Huysmans, J. G. Ballard, Arthur C. Clark, H. G. Wells, Raymond Russel, o texto do Livro Natural e Moral das Índias escrito por um jesuíta ou textos escritos por ela mesma. É uma tapeçaria metálica que nos remete à arquitetura oriental, sobretudo a islâmica.
A sensação de leveza e delicadeza que o trabalho de Iglesias sugere nos faz esquecer de que se trata de material pesado. A narrativa se entrelaça com a idéia de percurso. O deslocamento físico que um itinerário nos proporciona corresponde ao desenvolvimento de uma descrição como uma viagem. É a leitura como ideia de movimento construtivo de um i
maginário.
A arquitetura se mescla à literatura, desvelando a sintonia entre essas disciplinas. Os labirintos guardam uma organicidade própria das descrições de paisagens, lugares ou cidades. Com seus “Corredores Suspensos”, Cristina Iglesias revela que não há conflito entre a arquitetura e a literatura: descrever um lugar, ambiente ou cidade é criar uma estrutura que a cada vez que for lida será reconstruída e percorrida pela imaginação do espectador/leitor.
O fenômeno da leitura é reinterpretado nos “Corredores Suspensos” de Cristina Iglesias como algo não apenas intelectual mas, também, corpóreo. Dentro dos corredores, o espectador/leitor vivencia um evento sensorial que tem como fundamento a palavra. Enquanto o espectador flui pelos labirintos, seu corpo (inclusive o intelecto) frui a experiência como um estímulo ao espírito. A leitura como um diálogo diálogo do leitor com o escritor e, consequentemente com a cultura humana, se amplifica ao longo dos "Corredores Suspensos", poéticas passagens que nos arrebatam para ambientes fictícios através da palavra escrita.
Cristina Iglesias serve-se de certos procedimentos da arquitetura para despertar no espectador sensações como as que ele pode experimentar ao passear por um jardim ou qualquer ambiente interno. A luz e a sombra, potencializadas através do recurso às estruturas vazadas, vão ao encontro da função ornamental, tal como a arte islâmica, e não apenas utilitária de portas, janelas, corredores e outros espaços que proporcionam acesso, circulação e comunicação. As sombras que se projetam e se justapõem no piso e nos corpos das pessoas reafirmam o poder sedutor não só dos painéis em si, mas do que podem representar: o poder da l
eitura.
Os labirintos de Cristina Iglesias não são apenas uma representação metafórica da leitura. São a (re)criação, por assim dizer, ritualística, da viagem que representa o ato de ler. O corpo faz o percurso que o intelecto percorre quando lemos. Se, na leitura, os olhos e o intelecto são as janelas abertas para a interpretação dos textos, nos labirintos de Iglesias, o corpo (incluindo os olhos, a artista diz que é possível ler todos os textos que compõem os painéis) interpreta sensorialmente o ato de ler.
O caráter decorativo dos textos embutidos nas estruturas metálicas não relega a literatura a coadjuvante de um périplo onde elementos arquitetônicos se destacam. Muito pelo contrário. Nesses labirintos a palavra se “camufla” numa profusão de formas gráfico-geométricas. As letras são for
madas por linhas horizontais, verticais e diagonais que além de descrições de lugares ou ambientes possibilitam, através dos espaços vazios, belas projeções da luz.
A arquitetura dos textos se concretiza com a presença física da palavra, que forma padrões de forte apelo visual como artefatos construtivos que filtram a luz, criando jogos de claro-escuro que operam como estimulantes ao fluxo da imaginação. Ocultar e revelar são recursos que a melhor arte utiliza para enriquecer o nosso imaginário.
Não apenas os textos escritos nos painéis estão presentes. As grandes viagens, odisseias ou sagas narradas pelos aedos gregos e trovadores medievais, Jorge Luís Borges com seus labirintos e jogos de espelhos e até mesmo as "Cidades Invisíveis" de Italo Calvino podem virtualmente ser evocados e projetados pelo espectador ao passear pelos “Corredores Suspensos”.
Se descrições estão contidas não se deve concluir que o trabalho da artista seja narrativo. As palavras, com suas propriedades construtivas e compositivas, ganham status material, criam esculturas e com elas o complexo labiríntico. A palavra aí é um elemento concreto e, por extensão, escultórico.
O entrelaçamento das ações ver e ler nos reporta à figura do espectador como um flâneur, aquele que como um voyeur em seus passeios descompromissados interpreta a cidade, com seus flagrantes e detalhes,
como um objeto a ser desvendado, apreendendo detalhes que ao transeunte normal passam despercebidos. O flâneur lança, simultaneamente, um olhar atento e desatento, permitindo que o fluxo da observação aguce sua imaginação e o envolva.
Assim as analogias entre arquitetura e literatura, ver e ler, das dimensões corpóreas e imaginárias, do percurso como acontecimento sinestésico e intelectual instigado pela leitura, o leitor como um viajante intelectual e o espectador como um leitor visual, desdobram-se nos corredores de Cristina Iglesias como repercussões da flânerie, fenômeno que nos remete a Baudelaire e Walter Benjamin.
Nas instalações “Corredores Vegetais” (2008) os conceitos de itinerário são reinventados através de fragmentos de plantas, como galhos e folhas, trabalhados com resina de poliéster e pó de bronze. A incorporação da natureza passa por um processo de transformação, que a artista, graduada em química e arquitetura, associa à alquimia. A natureza, testemunha (e vítima) dos percursos humanos, aparece transfigurada como um fóssil que compõe fragmentos de labirintos revestidos de grande beleza plástica. O mesmo padrão decora o "Portão e Entrada para o Claustro dos Jerônimos" (2006-2007), peça de quatro folhas que se move cinco vezes ao dia instalada numa entrada do Museu del Prado. Os ciclos, círculos e diálogos proliferam nesse trabalho de Cristina Iglesias: interação entre os espaços fechados e abertos, museu e cidade, arte de museu e arte pública e, com o uso do bronze, material do qual é feito o portão, tradição e modernidade.
A água é outro elemento natural usado pela artista como componente escultórico. A maquete do misto de instalação e projeto paisagístico “Fonte Profunda” (1997-2006) que está na Leopold de Wael Platz em Antuérpia, na Bélgica, apresenta algo como uma grande piscina rasa com fundo de superfície irregular e textura porosa (feita de cimento modificado e policromado)
cindida por uma grande fenda que a divide ao meio por onde, num processo circular, de tempos em tempos a água escoa e depois volta. O subtexto erótico reforça o aspecto sensorial do trabalho de Iglesias e ao mesmo tempo seus conceitos de fluidez, circulação e circularidade. Grutas, fendas e água: aqui e ali, percebemos na arte de Iglesias sutis referências ao universo feminino.
A maquete de um ambicioso projeto labiríntico no Mar de Cortés, Punta Colorada, Espírito Santo, no México ("Aquário II"), é um exemplo ainda mais contundente dos conceitos de percurso que a artista tem desenvolvido. Um labirinto que deve ser construído no fundo mar localizado numa região propícia à formação de recifes. Com características semelhantes aos "Corredores Suspensos" como paredes vazadas e textos mas, ao contrário dos "Corredores Vegetais" em que Iglesias incorporava formas naturais, nesse projeto é a própria natureza que deve incorporar e se apropriar do trabalho da artista. Se naqueles corredores Iglesias multiplicava galhos e folhas transformados, em "Aquário II" o labirinto será colonizado por corais e povoado pelos seres do mar, assim como acontece com navios e outras embarcações naufragadas, radicalizando ou subvertendo o processo mimético com a apropriação do ambiente natural. Nesse trabalho, valores culturais humanos se fundirão à natureza e estarão a mercê do acaso e seus imprevisíveis caprichos.
Ao se apropriar da luz e da água a artista redimensiona esses elementos obtendo com eles efeitos plásticos que aproximam suas instalações de projetos paisagísticos e arquitetônicos, ainda que sem função utilitária, mas, à semelhança da melhor arquitetura e do melhor pais
agismo, exalam rigor e poesia visual.
A mobilidade pode processar no espectador um fluxo de imagens e palavras, acrescidas à projeção das sombras ou o escoamento e o retorno da água, para levá-lo a lugares irreais onde a concretude dos elementos torna-se etérea ou imaterial.
A instabilidade do olhar, repleta de estruturas flutuantes e indefinidas, constrói uma arquitetura erigida num lugar muito além da razão, projeto instável e impalpável que se vale do nosso corpo para formar um amálgama de conhecimentos e sensações indecifráveis e indescritíveis.
A exposição de Cristina Iglesias se realizou na Pinacoteca do Estado de São Paulo
Praça da Luz, 2 Bom Retiro São Paulo SP
tel.: 3324-1000
25 de outubro de 2008 a 4 de janeiro de 2009

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a tarde está quente o sol brilha intenso um vento quente sopra de leve o mar está calmo as ondas vêm morrer suavemente na praia onde ao molhar a areia se transformam em espuma branca o marulho se repete como um mantra aquoso infinito o ar quente é aplacado pela brisa que vem do mar a maresia paira e se estende com seu denso odor pela praia gaivotas repousam à sombra do coqueiral que prolifera ao longo da praia por quilômetros os coqueiros se dobram flexíveis e graciosos suas folhas como longas cabeleiras verdes leves ao vento de um tom forte e ofuscante como o branco da areia e o azul do mar macacos grandes e ágeis sobem nos coqueiros e jogam cocos aos que esperam embaixo munidos com pedaços de pedras pontiagudas conseguidas na costeira rochosa localizada no fim da praia eles quebram os cocos com grande destreza os filhotes pequenos observam curiosos guinchando excitados enquanto os maiores tentam imitar a agilidade dos mais velhos os grandes macacos jovens e adultos se deliciam com a coleta e a quebra saboreando a água e a polpa gelatinosa dos cocos os pais alimentam os pequenos que vão desistindo da difícil tarefa de quebrar para se concentrar no delicado sabor dos pedaços de polpa oferecidos pelos pais o vento tépido levanta os longos pelos de tonalidades vermelho-alaranjadas acariciando os macacos que pulam e dão cambalhotas na alva e fina areia depois da refeição e do banho seco a festa se prolonga à beira-mar sob os olhares cuidadosos das mães ciosas do bem estar de sua prole as crianças limitam-se apenas a molhar seus pequeninos pés nas ondas que se desmancham mornas na praia imitando os machos e fêmeas jovens e adultos que se aventuram a maiores profundidades algumas crianças mais ousadas e imprudentes se arriscam ansiosas e avançam no mar desafiando a força das ondas para desespero dos pais e mães que ficam furiosos e os retiram do mar com rapidez e veemência sob histéricos guinchados de protesto elas são removidas da praia pelos adultos contrariadas e resignadas permanecem sujeitas à vigilância de diligentes jovens babás propositalmente mal-humoradas e já treinadas para tarefas como essa devagar os adultos saem do mar alguns demoram mais tempo deliciados com as águas tépidas instantes depois estão todos sentados na areia descansando são cerca de cinco horas o sol agora está ameno embora a tarde continue quente enquanto os últimos saem do mar e se acomodam guinchando descontraídos muitos se deitam na areia macia os outros continuam sentados num quase silêncio quebrado por alguma reclamação infantil ou algum ronco de adulto adormecido a tarde vai caindo o sol se recolhe os que estão deitados se sentam como uma tela infinita o céu se tinge com nuances de laranja vermelho cor-de-rosa azul e roxo emoldurando o pôr-do-sol está tudo calmo e todos calados assistem o crepúsculo no lusco-fusco os macacos se levantam em relativo silêncio e caminham para suas casas lentos e sonolentos ainda entorpecidos pelo calor e pela água morna do mar moram empoleirados nos galhos de árvores frutíferas como mangueiras jaqueiras jabuticabeiras tamarineiras pessegueiros cajueiros abacateiros e tantas outras o bosque fica além da praia bem depois dos coqueiros descendo por uma vertiginosa ribanceira há um vale com um rio de águas límpidas e cristalinas eles caminham com delicioso cansaço na semi-escuridão cuidadosos para não pisar em serpentes ou outros seres peçonhentos as mães seguram com firmeza os bebês em seus braços fortes as crianças maiores como sempre reclamam da volta fatigadas famintas e sedentas os pais nem dão ouvidos para tais lamúrias silenciosos e claro famintos e sedentos também chegam exaustos a suas casas-árvores rapidamente escalam os galhos evitando ficar expostos à sanha assassina de feras predadoras noturnas em pouco tempo estão alojados nos seus galhos escuta-se aqui e ali alguns rosnados talvez de um macho ou fêmea insatisfeito o pio de uma coruja ecoa perto dali os pais protegem ainda mais seus filhotes abraçando-os com força ouvem-se agora rosnados ameaçadores e agressivos de todos um aviso à grande coruja-negra voraz predadora de filhotes indefesos para não se aproximar o alarido está no auge e deve se prolongar estratégia barulhenta de intimidar quaisquer predadores alardeando que estão todos atentos a eventuais investidas os rosnados vão se tornando esparsos a madrugada avança e os perigos da noite não só estão próximos como parecem iminentes os cuidados são redobrados os riscos não têm hora apenas mudam os agentes a manhã traz uma sensação de bem-estar não só por causa do longo descanso mas também porque estão todos vivos o dia irrompe fulgurante mas não sem preocupações o velho chefe lança seus olhares absortos e penetrantes para cada um principalmente aos pequenos parece tanto estar aqui quanto num lugar muito distante suas demoradas miradas parecem transferi-lo desse para outros mundos é um ser a um só tempo atento e ausente seu olhar profundo tem qualquer coisa de abstrato observa com calma como para constatar que todos estão bem com prazer e em silêncio as mães já dão de mamar a seus bebês os outros os machos jovens e adultos e as jovens e as adultas com seus filhotes maiores a um discreto sinal do velho líder saem para colher frutos caçar insetos ou até mesmo vertebrados menores o chefe é um ser afável mas firme aprecia longos silêncios e ainda forte tem suas fêmeas que lhe trazem comida e lhe fazem carícias mas prefere estar isolado no seu galho protegido à pequena distância por dois guardas escolhidos entre os mais fortes na floresta macacos-vermelhos machos armam uma cilada: no alto de uma árvore alguns deles perseguem e isolam um macaco-galho não deixando outra alternativa a este senão descer ao se perceber cercado ele tenta escapar descendo pelo tronco em desespero mestre no alto das árvores e equilibrista espetacular o solo definitivamente não é o habitat do macaco-galho antes mesmo de atingir o chão ele vislumbra o que o aguarda: outro grupo enfurecido de macacos-vermelhos o espera com fervor sanguinário com o coração na boca ele ainda olha para cima os grandes macacos descem atrás dele com furiosa agilidade transtornado o pequeno símio não tem mais dúvidas de que a morte o espera mas uma vez no solo num último apelo de seu instinto de sobrevivência ele continua fugindo a esmo correndo o capturam sua cabeça é arrancada com violência o sangue esguicha grossas gotas tingem o solo e atingem as caras dos macacos que exultam guinchando de prazer o frágil corpinho do macaco-galho é dilacerado e desmembrado braços e pernas são avidamente disputados e seu coração arrancado e exibido ainda pulsando nas mãos do filho do chefe que o devora inteiro o sangue quente escorre pela sua boca descendo pelo pescoço e peito para admiração dos demais os vários pedaços do corpo são disputados com avidez e entusiasmo pelos outros macacos com as mãos ensopadas de sangue o bando parte satisfeito o cheiro de sangue se espalha com rapidez pela floresta e pode atrair a voracidade de predadores é preciso que se lavem conclui o grupo perambulam algum tempo em busca de água ouve-se o rugido de um felino mais ou menos próximo sob o risco da reprovação do chefe ou pior da população que os acusará de expor a todos ao perigo eles desistem de procurar água e se precipitam em direção às casas-árvores bem antes de serem alcançados pela fera o canto estridente do pássaro-da-tarde ecoa floresta adentro prenunciando o perigo iminente ao chegarem às casas-árvores há um alvoroço e um princípio de revolta como o filho do chefe e seu bando ousam chegar sujos de sangue às casas-árvores pondo em risco toda a população? o chefe tenta acalmar a todos mas o severo conselho presidido pelo próprio chefe decide que seu filho e o bando dele devem ficar presos em gaiolas feitas de cipó penduradas em árvores durante uma semana expostos a todos e se alimentando só com água não há protesto de nenhum dos pais muito pelo contrário estes se declaram cobertos de vergonha ao verem seus filhos expondo todo o grupo ao perigo então a lei é cumprida mas os punidos se sentem intimamente humilhados e cheios de ódio meses um ano ou mais se passam espalha-se entre o grupo que uma fera talvez uma onça ou uma puma ou quem sabe uma pantera ronda as casas-árvores mas ninguém ainda a viu ou ouviu seu rugido ou encontrou sequer suas pegadas ou até mesmo captou qualquer outra evidência da sua suposta presença nos arredores o chefe quer saber quem é o autor desse boato e pede a ajuda do filho mais novo que depois de algumas horas diz não ter descoberto nada insatisfeito o pai permanece desconfiado o conselho se reúne com ele e solicita reforço da guarda nas casas-árvores o chefe tenta tranquilizá-los dizendo que tudo isso não passa de mero boato prova disso é que o autor nem teve a coragem de se manifestar mas o conselho insiste com o pedido alegando intranquilidade com relação principalmente à segurança dos pequenos e dos mais velhos o chefe ordena a seu filho o aumento da guarda nas imediações das casas-árvores este não obedece de imediato no início da noite espalha-se a notícia de que uma criança desapareceu os pais estão desesperados a mãe numa aguda crise de histeria pula de galho em galho emitindo guinchados que ecoam pela floresta a notícia chega ao chefe como uma rocha gigantesca caindo sobre sua cabeça consternado ele solicita a presença imediata do filho mais novo que já está no seu posto com ar de surpresa ele se dirige ao galho do pai que enfurecido exige explicações o filho diz ter obedecido prontamente às ordens lá embaixo há sinais claros de descontentamento e ira o chefe é acusado de negligência e culpado pelo sumiço da criança o conselho solicita reunião urgente com ele este ouve do conselho que todas as famílias estão alvoroçadas e revoltadas com o desaparecimento do filhote ele expressa todo o seu pesar e avisa que não está alheio aos acontecimentos anuncia que ao amanhecer irá pessoalmente com seu filho e a guarda procurar o filhote desaparecido a noite transcorre lenta e intranquila em seu silêncio o chefe ouve guinchos e grunhidos ameaçadores de nada ele tem medo mas ruídos como esses prenunciam um dia difícil a noite áspera se arrasta com sombras indefinidas que se projetam pelos galhos e através da espessa folhagem da mata a lua cheia resplandece competindo com o céu estrelado o chefe não prega o olho exasperado e desconfiado com o estranho comportamento do filho mais novo ele como autoridade máxima deve agir com bom senso mas tem que se manter atento aos movimentos dissimulados do caçula os grunhidos e guinchados dos macacos se alternam em modorrenta e dissonante sinfonia revelando na escuridão espectros sonoros de um recôndito sofrimento coletivo no decorrer da madrugada e até antes do amanhecer quando todos acordam emergindo de uma noite mal dormida com seus pesadelos abissais exibindo caras amassadas como se estivessem de ressaca o chefe recruta seu filho e a guarda para saírem à procura do filhote a manhã exala com a massa vegetal um frescor somado a um forte odor verde mas o dia como quase todos deve ser quente e abafado o conselho está reunido para desejar boa sorte ao chefe seu filho e a toda a guarda a mãe da criança continua chorando com tristeza resignada amparada pelo marido e a filha mais velha o chefe permanece concentrado e cauteloso ele sabe que é pequena a possibilidade de encontrar o jovem macaco vivo ou morto é muito provável que tenha virado refeição de alguma fera ele está confuso há alguma coisa nessa história que o intriga mas não consegue identificar a guarda tinha sido reformulada e reforçada sob a supervisão do filho mais jovem são macacos que ele conhece mas eles se tornam estranhos na companhia de seu filho alguns deles estavam naquele episódio quando ficaram presos em gaiolas durante uma semana a lembrança desse acontecimento não o agrada depois de conversar reservadamente com o conselho que ocupará suas funções até que regresse o chefe dá ordens para que partam seu filho e a guarda parecem compenetrados mas para ele é intrigante que quase todos os seus guardas de confiança tenham ficado na segurança das casas-árvores e claro o sumiço da criança é uma incógnita volta a pensar na prisão do filho e seus amigos agora todos na guarda é interrompido pelo próprio filho dizendo para onde deviam seguir subitamente se irrita ora essa quem é o chefe afinal? esbraveja para em seguida se arrepender no seu íntimo sim estava tenso oh! maldita noite de insônia oh! malditos acontecimentos pensamentos incômodos lanças pontiagudas que penetram e perturbam sua mente abranda a voz como se pedisse desculpas sugere ao filho qual caminho devem seguir ninguém como ele conhece a floresta embrenham-se mata adentro ele reconhece as árvores que um dia tantas vezes já subiu muitas outrora tão baixas e frágeis agora gigantescas olha para os lados e para o alto investiga tudo como se fosse a primeira vez ali percebe a floresta como um grande organismo vivo pulsante como tantas vezes já havia sentido ali mesmo sozinho inebriado por selvagem perfume fragrância ameaçadora como um ruído primal um som primordial um odor fóssil estonteante que vem nos deliciar e atormentar olhando para o alto ele consegue vislumbrar macacos menores de outras espécies imagens difusas de algum modo etéreas em sua condição quase aérea a selva mais confunde e esconde do que revela seu olhar flagra e capta os movimentos fortuitos e camuflados de seres por todos ignorados invisíveis com extrema discrição outros seres passeiam pela mata despercebidos e envoltos numa espessa bruma de intenções obscuras ele observa que a floresta tem várias camadas tanto em sua verticalidade quanto em sua horizontalidade e cada uma delas possui características distintas e seres diferentes desde as mais visíveis e suas várias subcamadas até as que os seus olhos não podem perceber ele lança toda a sua compreensão e as ama e a todos os seres que as compõem o sol brilha nas copas espessas das árvores gigantescas depois as de médio porte a seguir as mais baixas e assim toda a vegetação em escala decrescente filtra a luz solar impedindo a chegada dos raios mais fortes ao nível do solo a luz é amena embora entrecortada por luminosos e finos raios que compõem em seu conjunto um padrão luminoso e não raro se encontram partes mais escuras nas casas-árvores paira uma pesada tensão antes de partir o filho mais novo havia recomendado a seus aliados que tentassem desestruturar e desmoralizar o poder do conselho pondo em dúvida pouco a pouco sua autoridade após a partida do chefe o conselho então começa a ser fustigado por algumas famílias com reclamações quanto à sua segurança ignorando o conluio o conselho convoca a população e a tranquiliza dizendo dispor de uma guarda eficiente e reforçando os cuidados que todos deveriam ter consigo e com suas famílias a temperatura a esta hora no nível do solo é não menos do que a de uma fornalha úmida estão todos banhados e grudados de suor que se torna viscoso devido à seiva que pinga de vez em quando sobre as suas cabeças seus corpos e seus pelos empapados levando com frequência os membros da guarda ao desespero o chefe tenta acalmá-los estimulando-os a subirem nas altas árvores à procura de bromélias verdadeiros reservatórios naturais de água límpida para matar a sede e fazer higiene pessoal a queda da seiva em suas cabeças e corpos não cessa o que irrita enormemente a todos o chefe explica que esse estranho fenômeno se deve a vários agentes como pica-paus que furam com seus bicos potentes os galhos das árvores à procura de larvas e insetos que se alojam neles e que se alimentam da seiva ou dos pequenos galhos quebrados do alto das copas por animais menores que pulam pra lá e pra cá coletando frutas e caçando insetos mas impacientes e ainda empapados alguns dos membros da guarda guincham urram e até mesmo pulam irritados o chefe os reprova com veemência alertando-os ao perigo de serem ouvidos por feras famintas que estiverem próximas dali o chefe fica furioso e pela primeira vez pressente que o comando pode escapar a seu controle um som surdo distante é identificado pela sua aguda audição ele não diz o que é mas avisa para apertarem o passo o som cresce apesar da velocidade dos macacos o som vai crescendo como um tsunami que se aproxima cada vez mais o barulho abala a floresta acrescido de zumbidos de besouros e insetos de todos os tipos e gemidos de pequenos animais vertebrados como se estivessem em agonia a onda sonora se avoluma agora está em cima forte aterrorizante mas ninguém ainda consegue ver o que é o chefe que a tudo conhece manda que todos subam nas árvores depressa os guardas entram em pânico perdidos girando ao redor de si mesmos guincham de pavor o chefe já subindo numa árvore com o filho brada com os que ainda estão lá embaixo ouve-se os gritos desesperados de dois deles enquanto os outros correm e escalam apressados quaisquer árvores de cima observam petrificados as terríveis formigas-vorantes devorarem os dois infelizes guardas impotentes às milhares elas formam um exército terrível de formigas grandes vermelhas e vorazes os guardas gritam e se agitam na vã tentativa de se livrar das formigas elas sobem rápido seus sólidos corpos comem todos os seus pelos entram pelas bocas orelhas olhos e ânus e os devoram por dentro sugando inclusive seu sangue os outros assistem arrepiados e aterrados e ao mesmo tempo aliviados ao macabro banquete das vorantes em instantes os corpos dos dois macacos se desmancham restando poucos pedaços que são consumidos com velocidade impressionante a alva estrutura óssea que se mantém em pé durante um tempo desmonta de repente diante dos olhares incrédulos dos macacos encarapitados saciadas as formigas-vorantes seguem seu percurso pantagruélico arrastando e arrasando com sua fúria tudo e todo ser incauto que estiver à sua frente algumas formigas meticulosas ainda se deliciam com nacos de carne que sobraram nos esqueletos dos grandes símios realçando ainda mais a brancura dos ossos em seguida partem compondo a retaguarda do insaciável exército depois da tétrica refeição das formigas os macacos descem da árvore em estado de choque os guardas e o filho do chefe estão não menos que lívidos e trêmulos e não parecem animados em seguir adiante o chefe esclarece que as formigas-vorantes nunca voltam para trás já que elas a tudo arrasam como um flagelo então o que deve ser destruído ou melhor devorado é tudo que está a sua frente o conselho é surpreendido com o sumiço de outro filhote os pais chegam em prantos exigindo imediatas providências o calor aumenta todos além de chocados estão indóceis o filho mais novo caminha hesitante ele tenta disfarçar sua insegurança os guardas parecem não perceber seu comportamento ou mesmo qualquer coisa apesar de já terem ouvido antigos relatos estão abalados com o assustador espetáculo que acabam de assistir mas o pai a tudo observa os guardas de sua confiança apenas quatro num total de trinta embora chocados com o que viram estão mais calmos são mais velhos e mais experientes se nunca presenciaram cena tão terrível pelo menos podem ter encontrado vestígios o chefe é o único que realmente viu o poder devastador dessas formigas o conselho designa alguns guardas a saírem à procura do filhote desaparecido horas depois retornam com o pequeno cadáver ensanguentado repleto de ferimentos mortais para horror da população as famílias conspiradoras investem na oposição ao conselho tentando colocar todos contra ele sob a alegação de que é hora de trocá-lo percorrendo o mesmo caminho que as vorantes haviam passado todos observam que a natureza aparenta já estar se recuperando os vestígios de destruição e morte parecem estar sumindo como mágica os guardas porém andam quase catatônicos insensíveis às transformações que se desenrolam atento à apatia da guarda o chefe adverte a todos sobre o real objetivo da viagem ouve apenas balbucios de indiferença a desconfiança do chefe aumenta ele nota que nas paradas para descanso ou pernoite o filho e seus asseclas estão sempre envolvidos em diálogos inaudíveis apesar disso sempre com a orientação do chefe o grupo se embrenha na mata profunda passam por lugares obscuros com plantas árvores e animais de formas extravagantes paragens que todos menos o chefe nem sonhavam conhecer à medida em que avançam nas camadas mais densas a floresta imperceptivelmente vai se tornando uma entidade ameaçadora monstruosa em sua diversidade de organismo gigantesco que abriga milhões de seres vivos desconhecidos animais e vegetais fantasmagórica e misteriosa ela encerra segredos insondáveis e fenômenos ignotos os dias transcorrem lentamente eles dormem às vezes em cavernas escuras e úmidas onde ouvem a respiração e ruídos de animais ignorados às vezes em galhos de árvores de formas folhagens e flores exóticas a população se divide entre os que querem manter o conselho e os que apoiam a mudança a guarda se mantém fiel ao conselho mas as famílias conjuradoras já criaram outra guarda eles andam e imaginam não terem saído do lugar tudo aos seus olhos parece se mover em ritmo lento numa modorra orgânica uma letargia quase mortal o conflito entre as duas partes se acirra numa noite escura de lua minguante os membros do conselho e suas famílias são atacados pela guarda das famílias conspiradoras o clamor se instaura gritos lancinantes formam um mantra macabro que reveste a todos de pavor através de um movimento circular contínuo que vai se configurando como uma grande espiral o chefe pretende atingir o centro da floresta que tem o formato de um círculo imperfeito esse mega sistema circular com seus sons que se justapõem em camadas parece palpitar com batidas cadenciadas marcadas e hipnóticas o tempo ou a idéia dele flutua numa suspensão transparente e sincopada extáticos o passado e o presente se mesclam num amálgama de verbos e ações contraditórios o chefe conhece essa realidade e observa calado à lenta metamorfose da floresta a noite se concentra como um trágico tecido tramado com as letais linhas da violência e da dor temendo a morte metade da população foge aflita o dia seguinte assiste a um rápido esgarçamento da sociedade dos macacos-vermelhos cadáveres jazem estendidos no chão desfigurados e desmembrados cabeças cortadas distantes dos corpos como bolas jogadas ao acaso com semblantes congelados de horror e sofrimento bocas escancaradas e olhos arregalados um enorme enxame de moscas-negras carniceiras devora e cobre como um manto negro fervilhante os corpos e poças de sangue seus zumbidos se multiplicam e se justapõem formando uma massa sonora tão compacta quanto o aglomerado das moscas o chefe sente a falta de um dos seus guardas indaga ao filho que responde nada saber ele ordena que todos parem olha para um dos guardas as árvores e plantas com suas formas sinuosas e sensuais suas folhas e flores de cores fortes e ofuscantes infinitos tons de verde vermelho amarelo e azul mesmerizam sua visão sob chuva torrencial voltam a um trecho onde o chefe supõe ter perdido o caminho os guardas inutilmente chamam o macaco desaparecido em ecos os chamados são como uma imitação distorcida e desvirtuada um arremedo caricato de suas vozes pássaros e outros animais parecem responder em tons grotescos e sons espectrais que se amplificam e seguem um roteiro incerto e acidentado até chegarem fragmentados aos ouvidos dos macacos os sons se sucedem e se sobrepõem como uma algazarra bizarra que vem ridicularizar e atormentar o grupo o novo conselho já instalado e ciente da fuga maciça da população proíbe a dispersão dos que ficaram muitos são recrutados para remover os cadáveres o conselho tenta convencer a população a retomar seu cotidiano a qual no seu íntimo urde planos de fuga para a noite começa a chover primeiro gotas finas que aos poucos vão se avolumando os guardas argumentam que o caminho não parece ser o mesmo que tinham passado antes de voltarem à procura do guarda desaparecido o chefe diz que sim trata-se do mesmo percurso eles retrucam que tudo havia mudado a aparência das plantas e árvores não é a mesma o chefe responde que a selva é um corpo vivo e como qualquer ser está em constante mutação mas tão rápido assim? indagam os guardas e o chefe lacônico: o tempo escorre de fato os vegetais e animais aparentam se deslocar de suas formas anteriores e numa metamorfose alucinante mudam de maneira assustadora o olhar não é capaz de captar essas mudanças e deslocamentos se alguém tenta lembrar das formas anteriores a mente não é capaz de fixar qual era exatamente a forma precedente de determinada planta ou animal a mobilidade e elasticidade do tempo confunde e engana o olhar a chuva continua as gotas vão se tornando cada vez mais grossas o chefe sente a falta de mais um de seus guardas ou serão dois ou até mesmo três? sob forte chuva exige que todos parem o filho reclama o pai se exaspera perfila todos os guardas parecem todos iguais mas acaba distinguindo um dos seus os outros onde estariam? o filho diz que também sumiram outros dois guardas que eram seus amigos olhando nos olhos do filho o pai responde que isso não é verdade só os guardas de sua confiança estão sumindo ou mesmo sendo mortos a chuva torrencial cai ininterruptamente na escuridão da lua minguante as famílias em silêncio descem das árvores e deslizam pelas folhagens sem temer os perigos noturnos percebendo o movimento a guarda tenta impedi-las a confusão se instaura a fuga que até esse momento está organizada se torna uma balbúrdia no negrume entre gritos guinchos e grunhidos os assassinatos de crianças e adultos se prolongam pela madrugada e aquela criança? onde o filhote que nunca conseguimos encontrar? o chefe se pergunta sim está claro que tudo não passa de uma farsa constata entre uma ponta de ironia e boa dose de melancolia chegam à beira de uma clareira que ele sabe ser o centro da floresta enquanto se dirige ao meio dela ouve atrás de si guinchados de dor de que supõe serem dos dois guardas que lhe restaram horrorizado volta-se para seu filho que já se preparava para dar-lhe um golpe com um pedaço de madeira poucos macacos ou quem sobrou das famílias em fuga conseguem escapar ao massacre as famílias rebeldes partem bem cedo com sua guarda para se fixar em outro lugar bem longe dali atraídas pelo cheiro de morte aves carniceiras sobrevoam a área onde jazem centenas de cadáveres que permanecem semi-ocultos na mata fechada poupadas pelos guardas que ficaram exaustos de tanto matar crianças de várias idades perambulam em semi-círculo as menores chorando e gritando por seus pais muitas delas são conduzidas pelas maiores até a praia em vão o velho símio tenta fugir ensopado e exausto não consegue ir muito longe quase no meio da clareira o filho o alcança e o golpeia bem no meio do crânio seu corpo tomba numa poça o sangue tinge a água enlameada o filho pula sobre o corpo do pai já morto e corta o seu peito com uma parte pontiaguda do mesmo pedaço de madeira que o havia atingido suas mãos sôfregas puxam o coração do velho macaco e o erguem como um troféu aos guardas boquiabertos sozinho ele devora o coração do pai com a cara toda lambuzada de sangue sob a caudalosa chuva os guardas o assistem espantados e estupefatos com tamanha violência só chove chove muito chove cada vez mais o filho e a guarda lentamente se afastam zonzos como em transe deixando para trás o corpo do velho líder estirado e encharcado no próprio sangue e na lama bem no meio da clareira uma vez na praia as crianças agora livres dos adultos entram no mar e temerárias alcançam maiores profundidades uma delas é vista se afogando para aflição das outras que nada podem fazer as crianças menores se dispersam perdidas sob o sol escaldante muitas delas chorando de fome algumas se põem embaixo dos coqueiros olhando para cima na esperança de que um coco caia a seus pés os próximos dias serão implacáveis com elas que sem poder se alimentar morrerão à míngua castigadas pelo sol e pela fome à mercê de predadores do ar da terra e do mar o caminho de volta é longo e difícil para não dizer impossível de ser encontrado os guardas e o filho andam em volutas sem se aperceberem talvez embriagados pela vertigem em que se converteu a floresta e pela chuva mas iludidos acham que vão conseguir retomar o trajeto o barulho monótono da chuva sobre a terra e a mata abafado às vezes pelos trovões hipnotiza os macacos que prosseguem entorpecidos gargalhando os grandes dentes à mostra com as bocas arreganhadas para o nada ostentando funestos esgares guincham andam com lentidão os olhares perdidos ou fixos em pontos abstratos em fila indiana dão voltas em círculos incertos ao redor da clareira parecem conversar sem se ouvirem alguns mais impacientes se esgoelam e vociferam pragas em meio aos gritos esganiçados de outros os mais calmos balbuciam sons semelhantes a preces inauditas e imprecações inaudíveis configurando um conjunto de sons estranhos e desconexos uma grande algaravia a água se acumula no solo com passos descoordenados tropeçam no lamaçal mas ainda arranjam forças para se levantar ou se arrastar para lugar nenhum o canto do pássaro-azul soa através da floresta rasgando como um reluzente florete o som monocórdio da chuva
Palavras em Transe - tela 8 (2008)
acrílica s/ tela
346,5 cm (diâmetro)