0 comentários sábado, 14 de agosto de 2010

Litania dos Últimos Dias


O assassino esquartejava suas vítimas. Cada membro, enterrado numa vala: a das pernas, a dos braços, a dos pés, a das mãos, a das cabeças, as dos troncos. As valas mediam cinquenta centímetros de largura, três metros de comprimento por um metro e meio de profundidade. A distância de uma para outra era de um quilômetro. A disposição espacial delas formava um círculo imperfeito. Por longos anos ele matou sem correr o risco de ser descoberto. Não tinha preferência por perfil de vítimas. Gostava da diversidade. Viajava para cidades distantes e escolhia alguém ao acaso em local isolado e escuro. Depois de matar, geralmente por estrangulamento, acondicionava o corpo em saco plástico dentro do porta-malas do carro. Rumava para seu sítio, localizado num lugar ermo e distante de qualquer coisa. Vestido com um avental de plástico branco e luvas, separava os membros do corpo com uma machadinha afiada. Quando chegava a uma vala enterrava os pedaços do cadáver, acendia uma vela vermelha, rezava em voz baixa nove vezes o Pai Nosso e a Ave Maria e cuspia sete vezes sobre as palmas das mãos lavando-as com a saliva.


Um féretro infinito avança estrada adentro até se perder em brumas cinzentas. Vai embora como chegou: primeiro regurgitado, em seguida engolido pelo ralo guloso do tempo. Aparece e desaparece, num ciclo incessante que se repete em diferentes lugares do planeta.


Policiais, repórteres e populares se acotovelam para ver e examinar os corpos chacinados em mórbida curiosidade que morre em si mesma. A lama, mistura de terra seca com sangue coalhado atrai urubus, abutres, condores e outras aves carniceiras e os porcos que vêm chafurdar nas poças cavadas pelos passos dos transeuntes.


Um arqueólogo com o semblante gretado pela inclemência do deserto equatorial engolfado em paciência incalculável examina um pequeno osso que supõe ser do mais remoto ancestral do homem. A seus pés, uma fenda se abre e dela sai a foto do crânio de um hominídeo desconhecido que arreganha sua boca, repleta de dentes afiados como lâminas, e o devora inteiro a partir da cabeça. A fenda se fecha novamente levando consigo a foto saciada de seu jejum milenar e o pequeno osso.


Um paleontólogo extenuado por anos de pesquisas infrutíferas tropeça ao acaso na ossada de um pequeno animal. Num insight conclui ser do mais primitivo dos vertebrados. Observa assustado que do interior dos ossos emergem vermes que crescem em número e tamanho. Os vermes se multiplicam aos milhares penetrando as entranhas do seu corpo. Ele se debate na vã tentativa de se livrar do ataque repentino. O corpo sucumbe ao assédio dos vermes com sua fome ancestral. Agora só resta seu esqueleto limpo e branco reluzindo ao sol e jazendo tranquilo ao lado da ossada do pequeno vertebrado.


A fúria dos tratores dilacera a terra exumando através dos sulcos os sorrisos fantasmagóricos de crânios pré-humanos, caveiras e ossos de seres obsoletos de repente despertados de seu sono e retirados de sua mortalha eterna. Uma gargalhada irrompe rasgando o véu azul celeste em sentido transversal ecoando universo afora o desespero primordial.


Os sacerdotes realizam as complexas cerimônias que compõem as exéquias do rei morto. Seu corpo embalsamado envolto num manto de fino linho vermelho jaz num esquife ricamente adornado de símbolos herméticos pintados de cores berrantes e forrados com folhas de ouro. Carpideiras choram num clamor que ecoa em todos os recantos da cidade. O povo interrompe seus afazeres para lamentar a morte do soberano. Um alvoroço se espalha e se instala. Um desespero coletivo contamina todos os súditos. Os operários, imersos em faina obsessiva e com uma devoção que se confunde ao transe, concluem a construção da magnífica e labiríntica tumba real. Um vento quente e seco proveniente do deserto sopra sobre a múmia do monarca. O alarido se intensifica. A massa sonora do pranto das carpideiras é engrossada pelo murmúrio inflamado de um povo que acaba de perder seu poderoso deus-rei.


Um atleta exausto do árduo itinerário da maratona adentra o estádio. Ovacionado, ele e percorre a volta olímpica trôpego, munido da pouca força que ainda lhe resta e se esvai a cada doloroso passo. Em vertigem, seu cérebro gira dando voltas que atingem proporções cósmicas. O corpo fragilizado desmorona para horror da platéia que admirada e consternada louva e pranteia a vida e a morte do herói auto-imolado. A multidão ergue o cadáver e implora aos deuses a ressurreição do herói. Mas os deuses, egoístas e insensíveis ao apelo popular, exigem o corpo do esportista. Uma grande bola de fogo desce do céu, envolve o atleta e ascende rumo ao espaço sideral.


Terminado o parto, o médico entrega à mãe exaurida o bebê natimorto. O pavor infla o coração da mulher. Desesperada, ela se põe a devorar o bebê, as lágrimas se misturando ao sangue, o choro se mesclando ao frustrado anseio maternal.


Após bilhões de anos em que brilhou soberana e irradiou sua poderosa autocombustão a seu gigantesco sistema planetário, uma estrela entra em colapso originando uma supernova. Outra explosão depois, se transformará num pulsar ou, quem sabe, num pantagruélico buraco-negro que irá devorar qualquer corpo celeste incauto que tente se aproximar.


Um corpo dormente
jaz numa cama de
pregos pontiagudos
em estado de semidemência
a alma invoca a escada
com degraus irregulares
à medida que o corpo sobe
os degraus se tornam
mais e mais largos
o corpo já não caminha
escala com cordas a
crescente construção
de regular escada se
transforma em
emergente morro
depois em monte
e num gigantesco passo
numa colossal montanha
cansado o corpo
se arrasta
montanha acima
na escalada insana
imerso na demência
no topo vislumbra
um patíbulo
em vão o corpo
se desespera mas
a forca envolve
seu pescoço
resignado o corpo
já não esboça
qualquer esforço
num segundo
desfalece pendurado
como um pêndulo
pra lá e pra cá
num vai-vem
perene


um corpo se revela
através de uma janela
um escopo
no espaço etéreo
um alvo no ar
um corpo
um último esforço
se esvai à medida
que cai
um corpo
em veloz final
se expõe ao
espaço vazio
em vertigem resvala
no vácuo
no oco
no nada
um corpo
em desvario
não desafia
a gravidade
vai ao encontro
dela
um corpo ocupa
espia
expira
no espaço
no vão
um corpo
em queda livre
um corpo
se quebra atinge
esbarra no chão
o solo se borra
se tinge
de vermelha tinta
do mais puro sangue


cave sua própria cova
cave sua própria cova
cave sua própria cova
cave cave cave cave cave cave cave
sua
cova cova cova cova cova cova cova
cave cave cave cave cave cave cave
sua última
alcova alcova alcova alcova alcova alcova alcova
cave cave cave cave cave cave cave
sua última
caverna caverna caverna caverna caverna caverna caverna
cave cave cave cave cave cave cave
sua própria
cisterna cisterna cisterna cisterna cisterna cisterna cisterna
eterna eterna eterna eterna eterna eterna eterna








0 comentários segunda-feira, 7 de junho de 2010

Cenário: despojado, com velas compridas em número suficiente para formar um grande quadrado onde no centro ficará, imóvel, o ator.
Iluminação: com o palco imerso em escuridão, se a luz das velas não for suficiente, uma luz fraca sobre o ator.
Figurino: o ator deve vestir uma roupa de tons crus que dê a ilusão de que o seu corpo é todo deformado.
Cena: enquanto o ator fala, uma mulher vestida de vermelho vai apagando lentamente as velas. É necessário haver sincronia entre o apagar das velas e o texto falado. Quando o ator pronunciar a última palavra, a última vela deve ser apagada.

Mas o que espero? (pausa) O que espero é que oh o contato entre as mãos... o contato entre as mãos de crocodilo. Minhas mãos não mais as mesmas... Essa a meu lado não me entende. (pausa) Mesmo. (pausa) Outro dia... oh meus olhos... meus olhos. Vez em quando uma capa escura sobre meus olhos. Depois estrelas vermelhas, amarelas, azuis, verdes. Não devo pensar em nada. Nem é bom pensar agora. (pausa) Como estava dizendo. Fiz um convite. A imbecil pensou que queria matá-la. (pausa) Estúpida. Agora o que mais quero. Recuperasse os movimentos, primeira coisa. Naquele dia inda não. Só ir ao cinema. Apenas. Como? Não sei. Não posso ir ao cinema. Ou a lugar algum. Impossível. Saio daqui morto. Morto? Oh não oh não. De movimento só o barulho da rua. Sons de carros. Vozes distantes. Algum tempo atrás ainda raras saídas à praça. Sentado, sem quase movimento. Mas fora. Pelo menos. O vento, o sol, o calor... (pausa) o frio até. Pessoas. Pássaros. Ah o canto dos pássaros. Ler por algum tempo. Mas, do nada, a praça demolida. No lugar uma avenida. (pausa) Para onde tudo aquilo? O vento, o sol, o calor, o frio... Pessoas. Pássaros. E seus cantos. Todos enterrados. Carros atropelaram. Dia inteiro ouço o barulho dos motores. Esmagando tudo. Não fossem os carros apenas meu silêncio. (pausa) Carros. Transitando em meus pensamentos. Pensamentos... O que resta deles. Melhor dizer. Esmagando minha mente. Como rolo compressor. Sim. Ela ao lado. Sei que deseja meu fim. Em silêncio. E acha que quero matá-la. Não me disse nada. Mas sei. (pausa) Ela sim quer me matar. Aniquilar meus últimos dias. O que me resta. O pouco. O ínfimo. (longa pausa) Os carros que não param de transitar. Nem no silêncio da noite. Silêncio... Ruídos me rodeiam. Carros vem me atormentar. Ela sai de um carro preto. Toda de preto. O semblante sombrio. Armada. Espingarda, fuzil, metralhadora, sei lá. Tiros disparam. Em cadeia. O som ecoa. O carro some. Restando seu ronco. Ecoando. Os tiros. O ronco do motor. Maldição. Medo eu? Oh não! Sim? Ela acha. Certamente. Ela não diz. Nada. Mas sei. Sinto. Sei. Maldição!


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Ator B
O rei fora adora a mina. O réu dentro odeia a dor.


Ator B
O deus-rei fora adora o ouro dentro.


Ator A
O deus-réu dentro odeia a mina d'ouro fora.


Ator B
Ora o rei ora o réu mina o ouro doutro eu.


Ator A
Mais eu douro mais sou. Menos eu douro mino outro.


Ator B
A dor dentro odeia o rei fora.


Ator A
Mais eu douro mais eu rei.


Ator B
A dor doura o ódio.


Ator A
Menos douro mais réu. (pausa)


Ator A
Adentro mais eu só.


Ator B
Mais só com meu eu menos outro. (pausa)


Ator B
Longe d'eu longe doutro.


Ator A
Longe d'eu longe deus.


Ator B
Quando só dentro de mim menos eu.


Ator A
Quando longe de mim longe doutro longe d'eu longe deus. Sou nada no nada.


Ator B
Menos um menos dois menos eu menos outro. Nada.


Ator A
Todo muito longe deu em nada.


Ator B
Quando longe do eu. Doeu. Doeu. No nada.


Ator A
Mais longe d'eu menos outro menos deus. Nada.


Ator B
Nada. No nada.


Ator A
No nada. Nada.

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Ator B
Tão só com deus meu eu outro doutro. (pausa)


Ator B
Noutro meu eu deus.


Ator A
Só. (pausa)


Ator A
A hora do sou eu.


Ator B
Só. (pausa)


Ator B
Ora nada só meu.


Ator A
A mina d'ouro nada meu.


Ator B
D'ouro só deus.


Ator A
Ora eu ouro.


Ator B
Ora desdouro.


Ator A
Desdouro doutro meu eu. Deus-ódio.


Ator A
Ora sou são.


Ator B
Ora tão só.


Ator A
Ora soo eu.


Ator B
Ora soo outro.


Ator B
Soo eu em outro.


Ator A
Ora soo só.


Ator B
Ora soo nós.


Ator B
Ora me doo. Logo me dói.


Ator A
Só. (longa pausa)


Ator B
Um outro um eu dentro.


Ator A
Um eu nós outros.


Ator B
Um eu dois nós. (pausa)


Ator A
Me doo eu em dois. (pausa)


Ator A
Me dói eu em dois.


Ator B
Me dói deus. Embora.


Ator A
Deus doeu no meu eu. (pausa)


Ator A
Doeu foradentro do meu eu.


Ator B
Doeu nada.


Ator A
No tudo da hora só eu com meu nada.


Ator B
A mina d'ouro doeu noutro eu?


Ator A
A dor adentrou eu. Minou outro. Afora eu.


Ator A
Meu ouro dói em mim.


AtorB
Fora sou meu rei. Dentro sou meu réu. (média pausa)


Ator B
Adoro a mina d'ouro d'eu.


Ator A
Adorar a mina d'ouro d'eu dói dentro.

0 comentários sábado, 5 de junho de 2010

EU ou Eu


Ator A
Outrora no meu eu tão só outro.


Ator B
Outro no tudo eu doutro.


Ator A
Meu eu não é meu.


Ator B
Só outro eu com meu eu.


Ator B
Eu sou outro eu.


Ator A
Eu só onde o meu outro eu.


Ator A
A sós onde.


Ator B
A sós dentro doutro. (pausa)


Ator B
Adentro doutro eu. (média pausa)


Ator B
Ora fora ora dentro.


Ator A
Adentro a mina douro doutro eu.


Ator B
A mina do


Ator A
(m)eu deus.


Ator A
Ora meu deus ora doutro deus. (pausa)


Ator B
Ora


Ator A
oro.


Ator B
Ora


Ator A
adeus.


Ator B
Ora a teu eu.


Ator A
Ora adeus nós.


Ator A
Ora só ora tão só.

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banal
bananal
anal
bana(l)
nada


Oh!
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homem
holocausto
hontem
hoje
horror
oh!

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A série ondestoudondevimaondevou aborda a cartografia da cidade de São Paulo. Inicialmente eu iria pintar os mapas do bairro que moro e os que já morei, os lugares que passo e os que já passei. Mas como conheço quase toda a cidade vou pintar os mapas de todas as regiões. Essa série é dividida em várias partes: telas que retratam regiões ou grandes bairros como o Centro, Pacaembu, Jardins e Ibirapuera. A partir de cada bairro, eu foco em certos logradouros como trechos de ruas, praças, parques, cemitérios ou igrejas. Nesses recortes, o que se vê são apenas formas geométricas, com suas linhas retas e curvas, no limite entre o que se convencionou designar figuração e abstração. Assim, do macro ao micro, há a subsérie das ruas, praças, parques, cemitérios, etc. Como em Palavras em Transe, dou continuidade ao uso das cores primárias e das complementares acrescentando as cores ouro, prata e cobre. Iniciada em 2009, ondestoudondevimaondevou não tem prazo determinado para ser concluída, tal como Palavras em Transe.

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ondestoudondevimaondevou VI (2009)
acrílica s/ tela
92 cm X 130 cm

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ondestoudondevimaondevou V (2009)
acrílica s/ tela
95 cm X 112 cm

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ondestoudondevimaondevou IV (2009)
acrílica s/ tela
89 cm X 111 cm

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ondestoudondevimaondevou III (detalhe) (2009)
acrílica s/ tela
88 cm X 147 cm

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ondestoudondevimaondevou III (2009)
acrílica s/ tela
88 cm X 147 cm

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ondestoudondevimaondevou (detalhe) (2009)
acrílica s/ tela
88 cm X 147 cm

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ondestoudondevimaondevou II (2009)
acrílica s/ tela
88 cm X 147 cm

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ondestoudondevimaondevou I (detalhe) (2008)
acrílica s/ tela
88 cm X 147 cm

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ondestoudondevimaondevou I (2008)
acrílica s/ tela
88 cm X 147 cm

0 comentários terça-feira, 11 de maio de 2010

Savana Urbana



Os Chacais se esgueiram nas ruas repletas de sangue coalhado farejando pedaços de carne fresca.


Os Abutres vêm dilacerar o peito dos incautos, que passeiam em carros conversíveis recém-roubados, para arrancar-lhes os corações pulsantes de ódio.


Os Leões, Leopardos e Guepardos espreitam com calculada quietude nos becos das alamedas fuliginosas e barulhentas, onde podem escolher a menos zelosa Gazela, o mais ignorante Gnu ou a mais incapaz Impala.


Os Fantasmonstros sequestram a saúde do son(h)olento Paquiderme no negrume da noite enviando Traças e Sanguessugas que devoram com fervor suas entranhas.


A Infâmia camuflada de Fada passeia glamurosa nas ruas em ruínas num ócio nada gratuito.


Os Tigres perpetram chacinas no clarescuro de calabouços obscuros e esquinas traiçoeiras.


O Craque trafega com garbo em trajes esportivos sobre cadáveres putrefatos ou corpos semimortos que ainda emitem seus últimos gemidos de dor.


Os Crocodilos esperam com olhos vítreos e imersos em paciência lodacenta potenciais vítimas dentre desavisados Gnus e lesadas Gazelas.

Um Filhote de Elefante é fustigado por um grupo de Hienas apesar dos protestos da Mãe. Mas, num ímpeto, ela investe com fúria materna sobre o voraz bando que, como um bloco pulverizado, se dispersa em ruidoso alarido pela rua afora.



A Virgem vestida com trajes alvinegros aguarda a Morte: passarão a lua-de-mel na cidade-masmorra onde vão fuzilar a modorra cotidiana à queima-roupa munidas com metralhadoras furtadas de uma turma de Hienas armadas travestidas de Gnus.



A Barbárie se refestela num lauto banquete saboreando sanguíneas iguarias num seguro reduto situado na torre mais alta da megacidade.






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mãos
que
puxam
rasgam
se
destroemTamanho da fonte
mãos suicidas
mãos
que
dilaceram
violentam
o corpo
mãos assassinas
mãos
que
torcem
distorcem
retorcem
se contorcem
mãos
desvairadas


o movimento
teimoso
reduz
o gesto
a mero cacoete


não há esperança
de renovação
num gesto que esgota
e inibe
a possibilidade
de outros


não há outros gestos
só um


movimento obsessivo
que mata
a possibilidade
de outros
movimentos


não há novidade
só estagnação


a obsessão
solapa
a vontade


a dor que afeta
o homem
é um labirinto
de ações irracionais





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ok carne




invade o músculo
a faca velha
evoca a vaca louca
vade ferro carne
adentro expõe o vermelho
em febre fúria
ouve a música
em flocos no vácuo
rubras folhas espiam
a vida se esvaindo
em vão



deitado
com tristeza
espio
o lazer
da carne
no cio



falta serotonina
triste mente
compensa o
déficit
na dependência
da dor
que
nunca termina



povoado de alvo pó
o vasto continente mental
extravasa vozes que
reverberam incontinência verbal
em vão:
resiste o vazio



a goela engole: compulsão
a garganta engasga: convulsão
o brilho da bebida: colorido
o brilho da bile: incolor



no engulho tem gorgulho
no orgulho tem pedregulho
no engulho tem orgulho
no orgulho tem gorgulho
no engulho tem pedregulho
no orgulho tem engulho
no pedregulho tem engulho
no gorgulho tem orgulho
no orgulho tem engulho
no pedregulho tem orgulho
no gorgulho tem engulho



do eu: ária


diarréia diária
ruído e dor
que corrói
com raiva
e saraiva
o eu



suor do sovaco
dose sexy de amor
que soçobra o odor



my dopping
a dose exata
ou exagerada
gerada na
dopamina



o tremelique
da carne
emula
o chilique
da alma
trêmula



um laço de
fita vermelha
aprisiona
um coração
tresloucado



rebenta a
cadência do
tambor
ecoa o derradeiro
batuque
na decadência
do baticum



o sono saiu
e não chegou
o sonho partiu
e não voltou



aspira aspirina
espira em espiral
espiando inquieto
o espírito



o coração speedy
expõe insucessos
de um rally
de excessos



o ácido rasga
em fúria retilínea
a goela de
uma cidade
em derrocada



uma cadeia
espiralada
de eventos infames
assedia
a mente inerme
enquanto inerte
jaz demente



o cenário arreganhado
disfarça um enredo
cujas cenas
não passam de
uma horrenda farsa



uma fissura
no corpo
adormece a alma
um porco em agonia
estremece
à mercê
do verme
o sangue jorra
farto tingindo
de vermelho
a lama



o vômito marrom acusa
a química indigesta

da náusea cósmica



imersos num oceano
de águas turvas
os olhos marejados
refletem o
torvelhinho que
atormenta
a mente



nas entrelinhas
de mentes
em desalinho
entrevê-se
a dansa
dos neurônios



















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És não És


Ator A

No és não és das palavras a culpa nas entrelinhas.


Ator C

No tecido compacto das palavras um és não és. De culpa.


AtorB

Um és não és. Embora o nada. Ora, o nada. Um és não és. De culpa no nada.


Ator D

Nas entrelinhas entrevê-se um és não és de culpa.


Ator C

Entrevê-se o quê? Ora, um és não és de mentira. Um quase branco sobre branco. Qua-se! A mácula engendrada no tecido compacto das palavras.


Ator A

Vê-se então: na palavra compacta penetra um és não és de mentira. Então: a culpa.


Ator C

Medo. Culpa.


Ator B

A cupidez da palavra em vão disfarçada. A vanglória ecoa no tecido asséptico. Contamina a trama esgarçando o que era compacto.


Ator D

Rompendo a retidão do tecido. Nas entrelinhas da trama a mentira. Apenas. Um és não és. Embora.


Ator B

Sim um és não és. Ainda assim, a mentira. Onde a assepsia? No vazio brancobranco dos museospitais?


Ator A

Brancobranco? Nos museospitais onde o medo jaz. Embora em tubos de ensaio. Mas lá o medo. Lá! (voz alta)


Ator D

É preciso anestesia. É preciso a prisão asséptica dos tubos de ensaio. Eliminar o és não és da mentira nas palavras.


Ator C

As palavras à espera. A mentira fundindo-se ao tecido compacto. Agora, não mais. Um és não és. Mas. À espera do perdão. Limitude.


Ator A

Não o brancobranco infinito. Não o nada brancobranco. Na infinita assepsia museospitalar a mentira macula. Então a finitude.


Ator D

Recorrer a recursos artificiosos. Tubos de ensaio. A vanglória das palavras anestesiadas e congeladas em tubos de ensaio. Ainda assim, adianta?


Ator C

Sim? Sim. Sim? Onde o branco sobre branco das palavras?


Ator A

Apesar das vãs tentativas. Apenas um és não és. A mácula como registro. Fóssil vivo. Embora um és não és. Limitude.


Ator B

Brancobranco. Negronegro. Tantofaz. A homogenia como regra jaz. Um és não és no branco. Um és não és no negro. Ora, cor não vem ao caso.


Ator C

Os recursos artificiosos dos tubos de ensaio apenas reiteram: a finitude é irreversível. O tecido das palavras se esgarça em movimento inexorável.


Ator B

Negrobranco ou branconegro: um és não és apenas. Um quase nada. Qua-se. A finitude. Até onde?


Ator C

Na ruptura da trama. No esgarçamento inexorável. Onde começa a culpa e o medo.


Ator B

Onde entrevê-se o obscuro. O obscuro vazio. Entretrevas. Onde o és não és adquire a gravidade da culpa e do medo.


Ator A

Na fusão do nada com o quase. Na fronteira traiçoeira onde aguardam a culpa, o medo e a mentira. No esgarçamento do tecido não mais a retidão da palavra.


Ator C

Medo. De contemplar o medo. Mesmo o medo preso em tubo de ensaio. Na extrema assepsia museospitalar. Mesmo assim.


Ator B

Cúpidas palavras à espera de perdão.


Ator D

Perdão? Cúpidas palavras à espreita. Suspeita. Traição.


Ator C

De museu... Medo. Antisséptico. Fóssil vivo. Na penumbra. Do branco hospitalar.
No és não és.


Ator A

A cupidez das palavras à espera. . .De perdão? Embora a traição. A conspiração. Na penumbra do branco sobre branco.


Ator D

O medo de que a culpa ocupe. O vazio. O obscuro vazio museospitalar. Em meio a tubos de ensaio. Anestesiar a culpa. Depois, em tubos de ensaio. Não sair mais. Presa.
Ator C
Na vã tentativa de fossilizar a culpa. Com ela a mentira e o medo. Vã esperança de deter o esgarçamento inexorável do tecido.
Ator B
Mentiras à espera do esquecimento. Vã espera do perdão. Inútil busca de uma quimera. A assepsia. Falsa assepsia dos museospitais.
Ator A
A falsa assepsia. Onde a traição das palavras macula o perdão. Onde a palavra imaculada? No obscuro vazio dos museospitais? Na penumbra do branco hospitalar?
Ator B
No clarescuro do nada vazio? Nas roupas brancas dos asseclas do terror? Imaculada quimera.
Ator C
Não. A mácula das palavras apagadas? Jamais. O brancobranco? Impossível.
Ator D
Mentiras e palavras. Uma não vive sem a outra. Eliminadas as palavras, adeus mentiras!
Atores A e B
Eliminemos as palavras, então. Eliminemos. Aí o fim da mentira.
Ator B
A falácia da assepsia. (irônico)
Ator D
A culpa. Usada como desculpa. Usada, sim. Nem me desculpo. Porque usada! De museu. Ou de brechó. Minto apenas. Desminto e me culpo. Desculpas e mentiras de segunda mão. Cansa.
Ator B
Saborosas embora. De segunda sem dúvida. A dívida permanece. Restam dividendos. De culpas e mentiras. Menteculpadas. Mentecaptas. (pausa) Rever a morte. Em solidez putrefata.
Ator C
A assepsia museospitalar: não dividendos. Infecção museológica. Sem dúvida.
Ator D
Dupla infecção. Convalescimento em museospital.
Ator A
Não houve socorro. Nem perdão. Misericóridia roguei. A menteculpada acusava. Não podia correr. Não acusava perdão. Nem misericórdia. Por mais que rogasse.
Ator D
Convalescimento. De segunda em hospitalmuseozoológico. Infecção de segunda.
Ator B
Vestir a culpa. Como roupa mesmo. Nova. De brechó. Gastar a culpa. Ou poupar. Roupa. De sair. De casa mesmo. Como máscara. Maquiagem borrada mesmo. Desbotada. Pós-festa. Na ressaca. Culpa viva em cores desmaiadas.
Ator D
Saboroso convalescimento. Não é tudo. Museozoológico: pesquisa ilógica da culpa. Na tentaiva de erradicar o vírus da culpa. Inútil. Da mentira. Então. Em vão. Dentro o obscuro. A não resposta. O obscuro vazio como resultado.
Ator C
Diagnóstico: menteculpada. Ecoam as pesadas palavras nos museospitais.
Ator A
Não digo que não tenho medo. Lástima. Palavras. ouvem. E veem. E conspiram. Monstros. Mantê-las em tubos de ensaio. Na assepsia hospitalar museozoológica.
Ator C
Culpa minha? Ou da mente? Mentirosa. Submetê-la a trabalhos forçados. Nas masmorras dos hospitais museozoológicos. Mental assepsia.