quinta-feira, 11 de dezembro de 2008


Justificaro sol nasceu mais cedo e o dia já amanheceu quente é verão os pássaros e aves de todo tipo estão em polvorosa: têm que alimentar seus filhotes vorazes e famintos os mais diversos sons se espalham contagiosos numa algazarra que se estende por quilômetros o rio passa violento em seu leito como se tivesse pressa para chegar a algum lugar como se desconhecesse seu itinerário previsível talvez ele se sinta jovem e renovado talvez ele sempre faça do seu longo e agitado curso um passeio novo a cada centímetro que suas caudalosas e límpidas águas percorrem o sol brilha ao meio-dia e provoca nuances de azul e verde tão infinitas quando o volume das águas turvas do rio grandes rochas se erguem como totens ou edifícios ao longo de muitos trechos do curso tortuoso e errático o volume anormal das águas na época das cheias na primavera devido ao degelo nas montanhas que ficam cobertas da neve do rigoroso inverno e os ventos e a chuva impiedosos em sua fúria esculpem estátuas naturais seres resignados e orgulhosos que exibem com garbo sua beleza lapidada pela violência de uma natureza hostil mas sábia em seus fluxos e refluxos em sua brutalidade e delicadeza aves descansam ao sol sobre esses espigões naturais nos intervalos entre suas caçadas aquáticas quando se lançam certeiras como ogivas naturais em cima dos gordos peixes que o pródigo rio as oferta em porções infinitamente generosas devido às chuvas e enchentes grandes lagoas se formam paralelas às margens do rio com águas tranqüilas e altamente piscosas atraindo grande e variado número de espécies animais dentre invertebrados e vertebrados: insetos em infinito número incontáveis espécies de aves anfíbios répteis e mamíferos herbívoros carnívoros ou onívoros competem em número ou ferocidade para beberem ou se banharem se refrescando da inclemência do sol diversas espécies de patos nadam nas lagoas há o pato-do-papo-preto que é quase todo vermelho exceto na região que lhe dá nome porque se alimenta de crustáceos que comem pequenos peixes avermelhados de uma espécie chamada redemônio-pequeno que se alimenta da alga-vermelha-filetada que é chamada assim devido a suas folhas terem formato de filetes o redemônio-pequeno tem esse nome porque apesar de pequeno tem uma cara que parece uma máscara demoníaca vermelha em pequeno formato há também o redemônio-grande parente daquele mas este não tem só a cara demoníaca é um dos mais terríveis predadores do rio de seus afluentes e das lagoas é onívoro e caça em cardumes como as piranhas mas bem maior possui dentes afiadíssimos e apetite insaciável é temido tanto pelos seres aquáticos quanto pelos animais que freqüentam o rio seus afluentes e as lagoas menos pelo crocodilo-dourado que com seus grandes dentes afiados sua cauda longa e o corpo delgado e comprido pode vencer qualquer candidato a inimigo bandos de borboletas chegam aos poucos se misturam e pousam na superfície sobrevoando as lagoas um dia depois milhões delas de todas as espécies colorem os campos e florestas de infinitos tons e sobretons borboleta-amarela borboleta-amarela-da-mamoneira borboleta-azul borboleta-azul-seda borboleta-branca borboleta-carijó borboleta-coruja borboleta-corujinha borboleta-da-coronilha borboleta-da-couve borboleta-da-restinga borboleta-de-bando borboleta-de-piracema borboleta-do-manacá borboleta-do-milho borboleta-espelho borboleta-estaladeira borboleta-folha borboleta-folha-seca borboleta-gema borboleta-imperador borboleta-jandaia borboleta-listrada borboleta-monarca borboleta-namorada borboleta-oitenta borboleta-oitenta-e-oito borboleta-pequeno-caixão borboleta-rubi borboleta-transparente borboleta-viúva borboleta-zebra borboletinha-do-mato e milhares de outras espécies parece que não há espaço suficiente a ser preenchido por elas parece uma só entidade pousando sobre plantas arbustos árvores relva e até animais de médio e grande porte como um manto multicor toda a paisagem é coberta por elas que fervilham sem parar assim a natureza se assemelha a uma grande tela móvel e flutuante de cores berrantes e metálicas ofuscando o olhar dos animais hipopótamos se agitam nas lagoas incomodados com a vertigem visual a que estão sendo obrigados a suportar até mesmo soltam urros de irritação enquanto se movem com violência espalhando e turvando a água que forma grandes ondas para transtorno e desespero de patos de muitos tipos os quais disputam espaço com cegonhas garças e pássaros que caçam passeiam e nadam aproveitando o calor os crocodilos-dourados se banham ao sol nas margens das lagoas e do rio mas assombrados pelo grande assédio das borboletas fogem para a água deixando para fora apenas seus olhos com o alvoroço dos hipopótamos a plêiade de borboletas se afasta em ondas sucessivas o céu se cobre de um corpo flutuante etéreo e colorido os animais correm assustados e tentam se esconder na floresta é inútil ubíquas elas ocupam cada milímetro não sobrando qualquer mínimo espaço continuam a chegar às milhares e se multiplicam com vertiginosa rapidez não há mais lugar para elas que agora se amontoam umas sobre as outras formando coloridas camadas justapostas os hipopótamos impotentes mergulham na lagoa resignados os crocodilos-dourados acuados permanecem só com os olhos para fora d’água com a falta de lugar na terra a superfície das lagoas começa a se encher de repente estão repletas de milhões de borboletas sobre os patos garças cegonhas e outras aves que desesperadas voam para bem longe sopra um vento suave pouco a pouco torna-se revolto um redemoinho se forma e suga considerável quantidade de borboletas a vegetação se agita árvores e arbustos se curvam novas borboletas surgem e se multiplicam e por falta de espaço se sobrepõem novamente em camadas numa orgia colorida um vento forte traz alguns gafanhotos-grandes que em furiosa sanha carnívora começam a devorar as borboletas o vento forte não pára e com ele vêm novas levas de gafanhotos de todos os tipos gafanhoto-argentino gafanhoto-bandeira gafanhoto-cobra gafanhoto-crioulo gafanhoto-d’água gafanhoto-de-arribação gafanhoto-de-coqueiro gafanhoto-de-jurema gafanhoto-marmeleiro gafanhoto-de-praga gafanhoto-do-campo gafanhoto-gigante gafanhoto-invasor gafanhoto-menor gafanhoto-migratório gafanhoto-peregrino gafanhoto-soldado gafanhoto-sul-americano gafanhoto-verde dentre dezenas ou centenas de outras espécies chegam aos milhares cada vez mais rápido e devoram centenas de milhares de borboletas que continuam a chegar mas agora em menor número o céu e a paisagem vão aos poucos mudando de cor os infinitos tons multicoloridos das borboletas dão lugar aos tons de marrom e cinza dos gafanhotos o ruído perturbador desses insetos assusta ainda mais as aves mamíferos e répteis já acossados pelas inconvenientes borboletas os mais rápidos saem em louca disparada para muito longe e os mais lentos são devorados pela fome insaciável dos gafanhotos que obviamente não se contentam em tragar só borboletas quem não conseguiu fugir pagou com a própria vida do nababesco banquete dos gafanhotos só sobraram os esqueletos no caso dos vertebrados nem um mínimo naco de carne restou quanto às borboletas nem sua sombra o apetite dos gafanhotos parece infinito não satisfeitos depois de terem devorado todas as borboletas mas todas mesmo e outros insetos e vertebrados vulneráveis eles se põem a devorar a vegetação depenam tudo que encontram verde ou não depois que acabam o banquete pantagruélico resolvem descansar um pouco antes de partir para arrasar outras paragens eles não têm um líder que decida tudo é apenas um acordo coletivo tácito o ruído guloso e angustiante da fome infinita dos gafanhotos cessa o silêncio se impõe como um manto negro sobre a terra devastada a paisagem é um triste e infinito deserto com as árvores e arbustos sem sequer uma folha enquanto os gafanhotos descansam um vento sutil e tépido sopra aquecendo a sesta dos gafanhotos em silêncio grandes e verdes louva-deus invadem os sonhos gulosos dos gafanhotos que sucumbem no seu pesado sono ao apetite verde daqueles predadores eles chegam aos poucos não em levas mas individualmente é um banquete insidioso e lento ouve-se o ruido seco das articulações dos gafanhotos se quebrando nas suas bocas e dos corpos crocantes sendo aniquilados pelas garras poderosas dos louva-deus que degustam suas vítimas como se elas estivessem imersas num doce e fatal pesadelo só se ouve o discreto som do estalar dos gordos corpos dos gafanhotos sendo devorados é como o crepitar de uma fogueira lentos e meticulosos eles se deliciam com a calma e os modos que se espera de um gourmet eles se espalham por toda a extensão da grande planície tribanda completamente nua o sol brilha sobre os corpos alongados dos louva-deus expondo nuances de verde sobre as tonalidades marrons dos gafanhotos e marrom cinzentas da terra arrasada o rio percorre seu curso com a violência e veemência habituais revoadas de aves migratórias pousam barulhentas e famintas atraídas pelos milhões de louva-deus que descansam depois de se banquetearem com os gafanhotos as aves migratórias apenas passavam quando avistam do alto a multidão de louva-deus atraídas pela quantidade de comida decidem nidificar e procriar ali mesmo a fartura de louva-deus é tanta que os pais não encontram qualquer dificuldade para alimentar os filhotes negras nuvens se acumulam na atmosfera trovões ensurdecedores e relâmpagos ameaçadores prenunciam as fortes chuvas que não demoram para despencar do céu chove torrencialmente durante dias são como cachoeiras que se precipitam pesadas do firmamento sobre a terra as aves sem a proteção de qualquer folha pois não restou nenhuma sequer tentam proteger suas ninhadas apenas com as asas muitas perdem seus ninhos com os filhotes que caem dos galhos das árvores e arbustos nus e morrem atolados na lama ou afogados nas grandes poças que vão proliferando com a chuva contínua pior desdita têm as aves que nidificam no solo para essas espécies as perdas são imensas os pais quando não morrem afogados têm que se resignar a esperar o próximo ano para procriarem novamente um dia a chuva para como se o céu estivesse exausto de tanto chover o sol volta a brilhar folhas voltam a nascer nos arbustos e árvores antes silhuetas esquálidas desfolhados em meio a uma paisagem desolada as gramíneas voltam a crescer assim como toda a vegetação mesmo com aquela quantidade de chuva parte das aves se salvou e os animais que tinham fugido das pragas das borboletas e dos gafanhotos aparecem para repovoar a região um macaco arborícola salta da árvore ao solo é um indivíduo muito ágil mas seu pulo surpreende a si mesmo sua família pai mãe e irmãos não entendem nem sabem interpretar o que significa aquele salto nunca nenhum indivíduo daquela espécie fizera isso não é parte do seu comportamento são macacos arborícolas que passam a vida toda no topo de árvores altas além disso sua anatomia não está adaptada para tal peripécia e muito menos para se locomover no solo foi um ímpeto inexplicável uma força estranha que o impelia ao solo outras espécies de macaco transitam das árvores para o solo mas não essa adaptada somente às alturas passado o espanto inicial o que se segue é uma barulheira geral um protesto em uníssono dos macacos de cima com o salto imprudente o jovem macaco dominado ainda pelo choque do estranho ímpeto parece não ouvir ou ao menos não se importar com o alarido que vem de cima: paralisado e atônito olha para os lados sobre as quatro patas esboça desajeitado alguns passos ignorando as veementes reclamações vindas do alto parece fora de si com os olhos esgazeados se acalma olha para o chão bate as patas traseiras com decisão no solo algumas vezes como se estivesse se certificando que estava realmente em terra firme patético dá a volta no tronco da árvore quando chega ao ponto onde tinha pulado toma um susto com os guinchos irados que chegam aos seus ouvidos como pedradas sonoras como se estivesse saindo dum estado de transe só então se dá conta da encrenca em que se metera olha para cima e observa o grupo de macacos coléricos está tomado por uma dúbia sensação o prazer de estar pisando pela primeira vez no solo acompanhado do medo de enfrentar a reprovação dos que o esperam lá em cima depois de hesitar alguns minutos sobe a árvore temeroso de um castigo está confuso até mesmo desnorteado havIa experimentado um indescritível sentimento que nenhum dos seus semelhantes experimentara depois disso não se sente mais o mesmo mas agora o aguarda uma censura coletiva escala o tronco da árvore devagar com a cabeça baixa desejando que esse momento se prolongue infinitamente um silêncio incômodo o persegue assim como os olhos espantados dos macacos até sua chegada à copa da árvore quando se aproxima do grupo a gritaria é geral os pais o repreendem com firmeza a reprimenda maior é dada também por eles mas a mando do chefe: dois dias sem comer só água uma aranha espera na sua teia de fios quase invisíveis uma presa com a cautela e a paciência que lhe é peculiar a aranha é transparente o que a torna uma predadora muito bem sucedida os fios da teia são quase transparentes e brilham com a luz do sol a espera por uma vítima pode demorar horas mas de súbito ela se lança ao solo seu corpo transparente aos poucos vai adquirindo um tom branco com focos avermelhados na cabeça e na região das articulações das patas as pinças crescem nas patas dianteiras no seu dorso cresce uma carapaça do mesmo tom branco avermelhado do resto do corpo suas patas que antes dessa metamorfose mediam menos de dez centímetros agora chegam a mais de trinta seu corpo todo se avoluma e fica mais duro à semelhança de um grande caranguejo dois dias depois faminto o jovem macaco volta a se alimentar está ressabiado todos o encaram com desconfiança inclusive seus pais irmãos e outros familiares fica sozinho comendo os doces frutos amarelos que ele mesmo colheu logo de manhã quando se sentia muito fraco autorizado pelo chefe e os pais agora está só assim como nos dois dias em que ficou de castigo tudo indica que as coisas vão continuar na mesma pelo menos por algum tempo mas ele não entende direito o porquê da punição não quebrou nenhum tabu como invadir os territórios de outros grupos de macacos de sua espécie ou de outras isso sim é uma coisa muito grave claro ele entende que descer até o solo é uma temeridade correu um real perigo mas não podia ser castigado e humilhado como quem quebra certos tabus ou será que cometeu erro pior? tabus já são delitos previstos e descer da árvore nunca se cogitou a partir desse ato inaugura-se um novo tabu mas tanto sua família e o chefe têm certeza de que ele jamais voltará a fazê-lo a aranha-caranguejo caminha alguns metros à procura de vítimas apesar de grande ela é quase silenciosa sob essa identidade seu alvo preferencial são roedores e serpentes boa visão não falta a ela ser noturno quando aranha-caranguejo e diurno quando aranha-transparente suas longas patas têm sensores para detectar a aproximação de algum ser pára de repente pois percebe que há algo bem perto em segundos sente que uma força muito poderosa se enrodilha apertando-a e levando-a a um desagradável estado de vertigem que nunca vivenciara seu instinto de sobrevivência de imediato começa a trabalhar e as patas dianteiras com suas pinças grandes que ainda estão livres beliscam em desespero a jibóia a qual apesar das dores não pretende largar a aranha-caranguejo o jovem macaco sente falta de um contato com o resto do grupo que ao que parece o isolou até sua família agora o trata de maneira até certo ponto impessoal e distanciada ele se chateia mas continua colhendo suas frutas e brincando sozinho os macacos jovens com quem antes se divertia também o rejeitam o impulso de descer da árvore para dar um passeio no chão não o deixa é como uma fixação mas devido ao tabu tenta conter seu ímpeto a aranha-caranguejo continua dando beliscões na cobra com suas fortes pinças mas em pouco tempo a cobra consegue se desvencilhar desse incômodo as pinças da aranha-caranguejo são envolvidas por uma das inúmeras voltas do corpo da serpente ao redor de si mesma na natural tentativa de sufocar a aranha-caranguejo por constrição esta tenta um último beliscão doloroso na jibóia mas isso faz com que ela a aperte mais ainda a pobre aranha-caranguejo sucumbe à força violenta da jibóia que em seguida a engole embora com certa dificuldade sentindo-se solitário e abandonado o jovem macaco não resiste à segunda tentação de descer da copa da árvore para dar uma voltinha depois de ter devorado a aranha-caranguejo a jibóia não se sente muito bem fica enrolada num galho qualquer de uma árvore qualquer jiboiando sentindo um mal estar... ela sabe que isso não é normal dorme um tempo e depois acorda o mundo lhe parece opaco e sem graça seu estômago se revira como um liquidificador interno definitivamente não passa bem o jovem macaco sente um peso muito grande em sua cabeça parece que uma rocha caiu sobre suas costas ninguém se comunica com ele nem mesmo o olham e quando o fazem é com devastadora indiferença e desdém a jibóia tenta se deslocar do galho em que está ainda que devagar mas não consegue se movimentar mais do que meros centímetros seu estômago pesa toneladas tem a incômoda sensação de que engoliu uma rocha involuntariamente abre sua enorme boca e permanece com ela aberta durante longos minutos em frenesi seu estômago se revolve ela sente uma dor infinita mas aguarda com surpreendente calma que passe em vão a dor só aumenta experimenta a terrível sensação de alguma coisa devora com fúria o seu interior num movimento de dentro para fora sim é seu pobre coração tem certeza tamanha é sua angústia ai de mim ai! de mim! ela se lamenta e se agita em convulsão no auge de sua dor e aflição quando imagina que seu coração irrompe pela boca se sentindo toda rasgada e dilacerada em seu interior e já quase desfalecida eis que surge à sua frente um ser assustado coberto de sangue e gosma verde-amarelada envolta numa espiral de dor e agonia a grande serpente aterrorizada desmaia despencando pesada galho abaixo e se estatelando no chão completamente abandonado o jovem macaco não resiste ao forte impulso de descer até o chão ele tem perfeita noção do perigo que corre mas a vontade é imperativa olha para os lados e invadido por um misto de satisfação e desgosto o desprezo e indiferença a que está sendo reduzido o maltratam mas agora está livre para descer com muito cuidado e calma deve aproveitar sua liberdade é livre e ninguém precisa dizê-lo é um estado inerente ao seu corpo aos seus gestos mais simples enfim à sua presença no mundo a jibóia agoniza estendida no chão moscas e outros insetos carniceiros já sobrevoam e repousam em seu corpo moribundo volumoso e comprido moscas varejeiras depositam seus ovos em sua pele ferida as dores ela nem as sente mais nos estertores de uma vida feroz e gorda ela só espera ansiosa seu último suspiro a aranha-caranguejo revoltada com o que acaba de lhe acontecer resolve voltar pelo menos por enquanto à sua teia no caminho retorna às características anteriores simples transparente e pequeno aracnídeo de sua teia cujos fios brilham ao sol ela espera com perseverança uma incauta presa enquanto fantasia a sua próxima incursão como aranha-caranguejo sim ela está ainda traumatizada por ser engolida por uma jibóia mas foi esperta o suficiente para sair do corpo daquela serpente gloriosamente rasgando-a inteira por dentro fazendo o uso adequado de suas fortes pinças antes que fosse diluída no mar do ácido suco gástrico daquele poderoso ofídio bastaria ter mais cuidado na próxima ocasião uma mosca pousa num dos fios da teia hora de se alimentar finalmente com os pés no úmido solo dessa vez o jovem macaco pisa mais firme com a decisão que lhe garantirá um papel fundamental na evolução de sua espécie dá não só voltas ao redor da própria árvore como muitas nas imediações mas com tímida cautela não vai tão longe: apesar do seu ímpeto temeroso ele não considera prudente se distanciar ouve sons que nunca tinha ouvido rugidos não tão remotos de animais que ignora mas que causam temor e dos quais pretende manter-se afastado sua visita ao solo é repleta de sustos e sobressaltos até o ruído de gravetos se quebrando a seus pés o assusta seu músculo cardíaco pula inquieto mas isso não é suficiente para que se apavore e volte correndo medroso ao seu lar a aranha-transparente está bem satisfeita muitas presas tinham pousado em sua teia sim, do ponto de vista digamos alimentar não há razão para sua metamorfose mas desde quando as coisas devem ter sempre uma explicação plausível? ela não se conforma em ser uma simples aranha-transparente restrita a uma teia como milhares em toda a floresta sua eficiência como aranha-transparente boa predadora era inegável seu design e o de sua teia eram muito bem sucedidos mas isso não é o bastante para que permaneça sempre uma aranha-transparente enquanto sua teia lhe propicia certo bem-estar através da alimentação e da segurança ela se sente presa circunscrita aos limites circulares dos delicados fios os infinitos espaços da floresta poderiam potencializar o design circular de sua teia sim: a floresta seria sua infinda teia a aranha poderia continuar tecendo-a infinitamente mas preferia estender sua existência à macroteia que é a floresta o assombro de pisar num lugar que não considera seu o agita com incontrolável fúria frenético seu coração palpita estar no chão sozinho lhe causa vertigem que altura nenhuma jamis lhe causou sentir os pés no chão parecia uma busca por alguma coisa desconhecida para além das copas das árvores a segurança da verticalidade e as grandes alturas de um galho a outro que tanto o agradavam no momento parecem menos interessantes do que o estranhamento de sentir a terra firme sob seus pés olha para a gigantesca árvore seu lar pequenino e sozinho conclui que o gigantismo vertical a partir de agora terá que ser compartilhado em suas preferências pela horizontalidade dos vastos terrenos desconhecidos e perigosos da floresta a segurança e a certeza das alturas terá que ser dividida com a insegurança e a incerteza do solo ele se sente diminuto em seu corpo magro e jovem mas está certo de que é isso o que quer mas é uma certeza que vai além da sua consciência está inscrita com toda a força em todas as células do seu frágil corpo é muito fraco para lutar contra essa força avassaladora o gordo cadáver da jibóia jaz estirado no chão para deleite das moscas varejeiras urubus e abutres e condores que brigam por um naco de carne em decomposição o cheiro de carniça se espalha mais aves carniceiras aparecem a aranha salta da tranquilidade e segurança da teia para a vastidão da floresta sabe que pode enfrentar novos perigos mas provou a si mesma que tem suas defesas passa pela metamorfose e em pouco tempo está pronta para passear como aranha-caranguejo de novo o calor vindo do solo sobe como ondas em suas patas dominando todo o seu corpo a cada passo que dá o calor se renova como se antes não o tivesse sentido um ratão-do-banhado cruza seu caminho ele fica paralisado ao deparar com um ser tão estranho a aranha-caranguejo também fica embasbacada esperando alguma reação do ratão-do-banhado que nesse momento não tem a coragem de esboçar nenhum gesto por pequeno que seja há temor mútuo a aranha-caranguejo olha o grande e gordo corpo do ratão-do-banhado agora em pé e ele a observa olhos arregalados em detalhes suas longas patas suas pinças potentes e seu corpo branco-avermelhado longos minutos se esvaem até que a aranha-caranguejo resolve se escafeder aproveitando um momento de distração da aranha num átimo o ratão resolve atacá-la mas antes disso ela se lança ágil sobre ele suas fortes pinças tentam deter os movimentos ágeis do ratão-do-banhado mas ele não está brincando como também a aranha ele tenta se desvencilhar das suas pinças seu corpo dá um rápido giro sobre o corpo da aranha-caranguejo e guinchando se livra das pinças segurando com toda sua força em uma das patas dianteiras da aranha justamente as que possuem pinças ele a torce com a intenção de quebrar suas articulações mas a outra pata ele ainda não tinha conseguido imobilizar mais que depressa ela com sua outra pinça ataca o focinho do ratão-do-banhado que solta um guincho agudo de tanta dor com a pata dolorida a aranha-caranguejo dá um salto meio desajeitado para fora e trata de fugir também dolorido o ratão resolve dar o fora antes que se machuque ressabiada a aranha-caranguejo volta à sua teia e se transforma novamente em aranha-transparente e permanece quieta se recuperando da dor na pata que para sua sorte não quebrou o jovem macaco procura habituar seus pequenos pés às caminhadas ele sabe que não pode ir muito longe primeiro por ser muito perigoso e depois porque seu corpo não está inteiramente adaptado a ficar no chão por muito tempo mesmo que em quatro patas depois de cerca de uma hora suas costas pernas e pés enfim seu corpo inteiro começam a doer então ele tem que subir correndo na sua árvore antes que a dor o aniquile sim ele tinha que subir na árvore da sua família se subisse em outra corria o risco de ser expulso ou até morto por um grupo rival mesmo sendo da mesma espécie que a dele os delicados pezinhos do jovem macaco ficam machucados e quando parado lá em cima num galho distante em silêncio chora de dor e solidão quando caminha não sente de maneira tão aguda o atrito dos seus pés com o solo seu corpo esquenta devido ao movimento e entusiasmo com os novos exercícios e experiências desconfiados de que ele foge para dar suas caminhadas o grupo o isola cada vez mais por outro lado ninguém pode afirmar decisivamente que ele desce da árvore para passear discreto e esperto ele tem conseguido escapar e voltar sem ser notado há um acordo tácito entre os membros do grupo de que por causa de suas supostas transgressões o jovem macaco não merece nem que se lançe um só olhar sobre ele a aranha-caranguejo está moralmente abatida mas sabe que não vale a pena ser dramática afinal ela está bem foi corajosa ao se defender com a bravura que se espera de uma aranha-caranguejo disso ela não tem do que reclamar não podia nem deveria ser tão severa consigo bem talvez essas cobranças fossem em conseqüência das dores que está sentindo mas ela procura se consolar está bem claro não quebrou nenhuma pata apenas alguma dor tem sua teia onde pode se alimentar e descansar é isso mesmo tem que se recuperar se alimentando e descansando cada vez mais desconfiada a comunidade escolhe dois macacos para vigiarem discretamente à distância o jovem macaco que acredita que se está socialmente alijado não é mais obrigado a obedecer às regras do grupo de qualquer maneira pensa que deve ser cauteloso para evitar problemas ou sanções mais pesadas sensível embora marginalizado e aparentemente distante dos olhares do grupo intui que pode estar sendo vigiado ele sempre aproveita a sesta para dar suas escapadas mas até nessa hora é preciso tomar cuidado vislumbra olhares distantes dissimulados sobre si observa suas patas machucadas e as lambe para amenizar suas dores e se curar se alimenta bem e repousa para se recuperar e repor energias um vento gelado sopra impiedoso agitando a delicada embora nem um pouco frágil teia da aranha-transparente a qual permanece imóvel e indiferente aos humores e rigores do inverno nessa época devido à escassez de insetos suas atividades físicas naturalmente diminuem suas energias são poupadas quando entra em hibernação durante alguns dias esse estado é interrompido para eventual reabastecimento e em seguida voltar a hibernar num desses intervalos já devidamente alimentada ela salta de sua teia e se metamorfoseia os pés e mãos do jovem macaco são um pouco diferentes dos demais macacos do grupo não são tão curvados para dentro como os dos outros o design do seu corpo é ligeiramente mais alongado e menos curvado sua cabeça e orelhas são maiores nada que impeça a realização das tarefas cotidianas seus saltos e brincadeiras mas essas características por sutis que fossem sempre foram notadas pela família ao longo do seu crescimento pelos outros membros do grupo essas diferenças no entanto não o impediram de ser aceito pelo grupo grande parte dos animais no inverno hiberna então a aranha-caranguejo se sente mais segura para flanar sem ser incomodada olha para os lados e constata que todos dormem desce da árvore devagar lá embaixo sente com prazer o calor do solo sob seus pés jurou para si que não iria se exceder nas suas andanças o vento sopra morno os galhos das árvores balouçam produzindo um som intenso e luxuriante lança rápido olhar para cima como para se certificar de que estão realmente dormindo experimenta de novo a sensação de pequenez agora com certa satisfação sem se aperceber afasta-se de sua árvore e para sua desolação está longe ou para ser mais exato perdido ensaia alguns passos para se lembrar do caminho inútil fica parado por alguns minutos na tentativa de reconstituir mentalmente o caminho de volta sem o menor sucesso o vento traz estranhos sons algo como escassos risos agudos o jovem macaco gela nunca tinha ouvido nada tão assustador em segundos se avoluma um grupo de ameaçadoras hienas que não lhe parecem estar ali para brincadeiras a aranha caranguejo caminha imersa numa paisagem branca dá voltas algum tempo num ziguezague sinuoso e labiríntico o vento sopra suave e gelado ela gosta da sensação de estar a esmo pela floresta vagar sem rumo definido a teia apesar de proporcionar a ela alimento e segurança circunscreve-a a um microcosmo que ela considera muito limitado ela anseia os grandes espaços as dimensões sem limites da grande floresta diante do riso sarcástico das hienas o jovem macaco não tem dúvidas das suas intenções põe-se a correr desajeitado e logo atrás as vorazes hienas emitindo medonha algazarra desesperado escala com rapidez a primeira árvore sem ignorar que nos galhos aguardam mal-humorados primatas da mesma espécie que a dele mas de outro grupo ao perceberem o invasor os macacos furiosos com a ousadia disparam atrás dele aos gritos a situação se complicaria para o jovem macaco se ele descesse salivando as hienas o esperam lá embaixo não pensou duas vezes: com velocidade estonteante pula de árvore em árvore sem se importar com os territórios que invade atrás de si o alvoroço dos perseguidores só aumenta sentindo a neve macia sob suas patas sem se importar com a baixa temperatura a aranha-caranguejo desfruta pela primeira vez tranqüila a sua liberdade fora da teia sem nada ou ninguém que possa atrapalhá-la ou ameaçá-la mas oh! ai dela! eis que se insinua por entre a vegetação desfolhada alguma coisa viva que a deixa perturbada não pode adivinhar mas parece uma sombra vermelho-alaranjada que se movimentava com certa rapidez continua aumentando o número de macacos e o volume do alarido na medida em que chega em cada árvore seu coração se acelera a aranha-caranguejo entrevê a coisa que tenta se esconder dela um pedaço aqui outro pedaço ali assim de pedaço em pedaço ela conclui que se trata de uma... raposa animais como esse geralmente não se alimentam de aranhas mas é inverno e nessa época há escassez de alimento depois de muito tempo mas ainda muito aflito ele percebe que os macacos tinham desistido de persegui-lo olha com cautela ao redor silêncio exceto o canto das aves e o farfalhar das folhas das árvores pára hora de descansar acomoda-se num galho que o deixa bem escondido exausto adormece depois de algumas horas acorda mais tranqüilo vira-se para cima e vê os galhos com as folhas do verde tenro das altas copas ao fundo o azul intenso do céu de verão macacos menores e inofensivos aves esquilos insetos e outros animais pequenos aproveitam a abundância de alimentos das camadas mais elevadas das árvores ele vaga à toa de galho em galho comendo suculentas frutas parando num galho observa que numa reentrância há a sombra de alguma coisa semi-oculta curioso dirige-se devagar ao local é um susto mútuo quando de chofre ele se coloca à frente de uma jovem e frágil macaquinha da mesma espécie que a dele quando a raposa se põe à sua frente a aranha-caranguejo não se assusta e permanece imóvel aguardando a próxima ação do animal que vai chegando devagar curioso e cuidadoso com seu agudo olfato ele procura sentir o cheiro ainda a certa distância da aranha-caranguejo fareja um odor de sol rio e terra ao mesmo tempo para ambos é um misto de fascínio e espanto fragilizados os jovens primatas se examinam durante alguns minutos aos poucos se aproximam e se acariciam quando o jovem macaco quis ir além das carícias tentando agarrá-la ela o repele com firmeza tratada com violência por seu grupo por descer ao solo como o jovem macaco ela está traumatizada tinha tentado fugir várias vezes mas sem sucesso e na última vez conseguiu escapar à noite enquanto todos dormiam agora perseguida pelo jovem macaco ela se esgueira se lembrando com horror das violências às quais foi submetida a raposa vai chegando cada vez mais perto da aranha-caranguejo à medida que ela se aproxima esta vai ficando cada vez mais nervosa mas não move nenhuma pata sem se deslocar um milímetro a raposa se aproxima mas a aranha-caranguejo não se mexe e sente chegar até ela um cheiro úmido de selva chuva e poeira ela interpreta a aproximação da raposa como um perigo claro mas por outro lado pressente que no caso dela não há sinal de fome ou pré-disposição à agressividade espera ela se aproximar ainda mais para esboçar alguma reação ou seria mais seguro recuar e ir embora? não sabe a expectativa torna-a inerte é como se estivesse presa ao chão finalmente o jovem macaco agarra a macaquinha envolvendo-a com força no início ela resiste mas aos poucos deixa-se dominar depois do sexo comem frutas e satisfeitos experimentam o prazer de estarem livres brincando pendurados nos galhos depois repetem o sexo a raposa se aproxima ainda mais da aranha-caranguejo e examina-a com redobrada curiosidade chega mais perto aproximando o focinho o cheiro de sol rio e terra mistura-se ao cheiro de selva chuva e poeira o casal de macacos copula mais três vezes e depois desce da árvore uma vez no solo sentem-se leves e seguros e inebriados se distanciam da árvore em que estavam uma nuvem de pó se forma sobre a aranha caranguejo e a raposa e os envolve depois que se dissipa ambos já não estão mais lá camuflado numa moita um leopardo espreita o casal o jovem macaco percebe o perigo protege a fêmea pondo-se a frente dela que foge apavorada o leopardo pula com seu ágil e pesado corpo sobre o indefeso macaco devorando-o com seus dentes afiados

Palavras em Transe - tela 10 (2008)
acrílica s/ tela
378,0 cm (diâmetro)

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