segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

no topo da montanha venta muito um ar muito frio gelado mesmo cortante como punhal afiado que atravessa a carne macia é isso um vento frio que cruza o corpo mas o homem não está nu muito ao contrário anda bem agasalhado e quanto mais agasalho veste mais frio passa sozinho sonha acordado com todas as pessoas que conhecera ou pelo menos que podia se lembrar pensa ver uma fogueira ou seria uma pira um grande fogo até mesmo uma miragem num deserto em altitudes geladas confinado a esse lugar tinha todo o tempo do mundo pode ser desesperador mas não vale a pena se desesperar para quê? você se desespera se há alguma migalha de esperança embora sem qualquer certeza também para que ter certeza nesse lugar certezas não cabem em desertos montanhosos lugares rarefeitos onde a temperatura depende do humor do clima certezas são raras se feitas mas não rarefeitas talvez sejam densas pesadas mas ora para que se preocupar com a densidade das certezas e rarefação das incertezas? não há porque pensar nisso mas em alguma coisa deve-se pensar não há porque não pensar em nada não há qualquer motivo para se desesperar não de verdade mas o que digo parece ser uma certeza não nesse lugar não de verdade talvez uma cogitação no mínimo ou no máximo tanto faz medidas e volumes talvez não façam o menor sentido agora como realmente não fazem bem lá venho eu com certezas e dúvidas talvez não se trate de meras certezas e simples dúvidas há um contexto hostil eu diria no mínimo sem dúvida rarefeito de fato então não há por que pôr em dúvida certas evidências eis certezas evidências bem a maior das evidências é que estou absolutamente só e com muito frio as outras podem existir e existem ou talvez mas não resta a menor dúvida de que a solidão e sua frialdade são um fato em minha vida hoje parece que está mais frio... o homem sente o frio gélido chegar aos seus ossos e a fogueira à sua frente sem um pingo de calor gélida miragem talvez sejam minhas lembranças que vêm me assediar como fantasmas roubando meu calor e meu sono são como ondas geladas rajadas de vento que assobiam sibilam incômodas me provocam arrepios e calafrios o pio da coruja-da-montanha anuncia que ela saiu para caçar deixando seus filhotes no ninho aquecidos mas famintos depois de passarem o dia inteiro dormindo quentinhos sob as asas da mãe a coruja que não tem com o que se preocupar na altura em que está o ninho não tem predadores apenas suas colegas corujas-da-montanha que como ela constroem seus discretos ninhos em buracos entre pedras que os protegem da inclemência dos ventos gelados e das nevascas mais ou menos freqüentes tranqüila a coruja-da-montanha desce em vôo silencioso e certeiro para altitudes mais baixas à procura de caça como serpentes e roedores tarefa árdua a coruja-da-montanha passa a noite alternando as temperaturas amenas ou mesmo quentes das florestas com o rigor do frio do topo da montanha seu estômago é pequeno e não comporta tanta caça assim ela é obrigada a fazer várias viagens para alimentar seus vorazes e insaciáveis filhotes regurgitando em suas gargantas ao que parece sem fundo na madrugada o frio se intensifica as lembranças não dão sossego vindo à mente como uma dança malemolente e hipnótica o homem até consegue cochilar um tempo mas acorda chorando nostálgico de um tempo recuado e difuso que já foi bom suporta a fria madrugada atormentado pelas incômodas recordações com o peito apertado ao som do fantasmagórico assobio do vento um som agudo que atravessa metálico cintilante e afiado seu coração me levanto e ando em círculos para esquentar meus pés que estão gelados o vento glacial me traz a certeza de uma vontade que de súbito me domina de continuar ouvindo o pio de satisfação da coruja a cada vez que ela deixa o ninho depois que alimentou os filhotes e parte decidida em busca de mais provisões observar o cotidiano da coruja-da-montanha pode me dar talvez a certeza de que o bater das suas grandes asas o qual apenas ouço de onde estou como a sombra de um som é uma maneira de prestar atenção em algo vivo e não à tentativa frustrante de reviver e tentar consertar ou articular cenas que já nasceram tortas ou mesmo mortas tento percorrer mentalmente o itinerário aéreo da coruja seu olhar matemático e penetrante e seu vôo calculado sua plenitude seu belo corpo suas penas macias seus olhos magníficos não dão margem para dúvidas suas grandes asas alçam o vôo que não será o último mas será sempre definitivo sua existência depende da limpeza ou manutenção das penas principalmente as das asas do silêncio do seu vôo e da abrangência do seu olhar espero o tempo passar isso não quer dizer nada não estou à espera de qualquer coisa muito menos que o tempo passe esperando ou não o tempo passa portanto é inútil esperar talvez isso possa implicar imobilismo ou comodismo e comodista talvez eu não seja vejam bem eu cheguei ao alto de uma montanha quero dizer ao ponto mais alto então eu talvez tenha certeza que não sou imobilista nem comodista digo talvez porque talvez alguém ponha minha opinião em dúvida e se isso acontecer é porque talvez possa não ser verdade o que disse já que há a possibilidade de eu na realidade ser imobilista e comodista pelo menos minha localização física revela que solitário devo ter me deslocado de algum lugar bem mais baixo ou seja talvez na verdade de imobilista e acomodado de fato eu não tenho nada um deslocamento físico pode significar muita coisa embora esteja num lugar onde não haja nenhuma testemunha desse feito lá embaixo ninguém deve se lembrar de mim e talvez não haja qualquer registro sobre mim em livros arquivos ou coisa que o valha não há a menor dúvida de que o fato de eu estar aqui é um deslocamento e tanto e só não pode ser maior porque aqui é o topo não há mais nada acima exceto nuvens talvez estejam me esperando lá embaixo para registrarem a minha façanha ou talvez já tenham me esquecido ou dado como morto e então desistiram de me procurar de qualquer maneira o fato de estar aqui não quer dizer que desisti de viver de qualquer maneira se aparecesse alguém a minha procura devo admitir estaria perdendo seu tempo se permaneço aqui talvez não seja mesmo por desânimo imobilismo ou comodismo mas por opção embora o mau tempo tenha colaborado para minha permanência aqui não sei disso realmente não tenho certeza talvez seja uma maneira de me aliviar de sofrer menos sei lá tentei várias vezes atravessar a grande rachadura da águia um largo intervalo num grande bloco de rocha que domina a maior parte da área superior da montanha só consegui transpor essa grande falha na subida porque estava coberta de gelo e naquele momento não havia risco de avalanches fenômeno muito comum nesse trecho na primeira tentativa usei minhas cordas de alpinismo muito fortes e feitas de material resistente a qualquer fricção em pedras pontiagudas e cortantes mas nessa rocha há imperceptíveis relevos que são como afiadas lâminas o inevitável rompimento da corda me jogou para uma parte muito profunda da falha ferindo-me dolorosamente nas costas e pernas a fenda ou falha era muito escura devido à sua profundidade a muito custo consegui subir sob intensa dor em alguns momentos desmaiei pendurado na corda correndo sério risco de despencar novamente com muito medo de que a avalanche repentinamente me soterrasse de vez e sentindo dores horríveis cheguei enfim na superfície depois de algum tempo curados os ferimentos tentei novamente também com as cordas mas dessa vez nas partes mais estreitas e menos profundas da fenda eram bem raros esses pontos já que as duas características tinham que coincidir foram várias as minhas tentativas numa delas quase morri soterrado por uma violenta avalanche por sorte percebi quando se aproximava fiquei bem rente ao paredão na parte interna da falha respingos nada desprezíveis do deslizamento voaram sobre mim que fiquei literalmente gelado o homem anda em círculos tentando se esquentar fricciona as mãos e depois as leva às faces o vento gelado fustiga seu rosto penetra suas grossas roupas e invade seu corpo como único e arrepiante calafrio o vento gélido assobia uma música fantasmagórica aguda que penetra metálica os tímpanos como faca fria e afiada a dor rasga corpo adentro obrigando-o a se prostrar um frio intenso e uma sensação de desamparo se apossam dele perde os sentidos acorda prostrado em posição bastante desconfortável zonzo com os joelhos e outras articulações doloridas levanta-se com dificuldade ignorando quanto tempo permaneceu inconsciente naquela incômoda posição já é manhã e um sol irônico como se fosse apenas um ornamento sorri para ele sob um denso frio polar caminha trôpego e lentamente para se apoiar numa grande pedra lisa e inclinada apóia-se nela quase deitado ou reclinado e olha para o céu límpido de um azul intenso serra os olhos e apenas vislumbra um impalpável vazio cinza queda-se nessa posição por longo tempo num estado límbico entre o sono e a vigília é surpreendido por flocos de neve que caem sobre seu rosto e dentro de sua boca aberta engasga-se com a neve tosse com exagero curva-se em desespero de repente domina-o o medo de morrer ele que muitas vezes angustiado desejou a própria morte e agora se aflige porque o invade uma sensação de morte a qual com a tosse tenta expulsar a luz do sol incide sobre a neve reiterando sua brancura ofuscante em efeito cegante ainda tossindo muito ajoelha-se na neve e em gesto involuntário leva as mãos aos olhos tapando-os no escuro seu corpo joga-se sobre a espessa camada de neve o contato com a maciez gelada aplaca seu desespero não ainda não chegou a sua hora com uma das faces mergulhada na neve respira aliviado a lebre-da-montanha irrompe sobre a monocromia do branco sua velocidade marrom acinzentada rasga a paisagem alva como uma linha ilusória e efêmera se desenha numa folha de um branco imaculado ele ouve um grito agudo manchando a alvura do silêncio um grito de dor uma linha vermelha sobre o branco dominante sem dúvida de extrema dor a pobre lebre cai e se fere mortalmente numa das várias armadilhas espalhadas na montanha fabricadas pelo próprio homem pronto: seu dia estava ganho uma felicidade resignada o acolhe devagar ele se arrasta em direção à armadilha a lebre jaz morta ao pegá-la o sangue cai em espessas gotas sobre a neve ele examina o animal morto em detalhes toca com delicadeza na sua pelagem patas e orelhas verifica o sexo: feminino mas para seu alívio não parecia estar grávida leva o pequeno corpo ainda quente ao rosto há muito tempo não sentia o calor de um ser ainda que morto um odor forte e selvagem penetra em suas narinas e invade com violência o interior gelado do seu corpo um repentino calor apodera-se dele com sofreguidão roça a pele ensangüentada no rosto grossas lágrimas caem em cascata dos seus olhos se fundindo ao sangue quente com a cara lambuzada chora convulsivamente dentro de suas grossas roupas seu corpo agora está muito quente e banhado de suor o fogo brilha incandescente na paisagem branca sobre uma pirâmide imperfeita o corpinho pelado da lebre repousa atravessado por um tosco espeto de madeira sendo tostado e assado o coração do homem se aquece seus pés frios se esquentam com o fogo ao redor da pirâmide a neve derrete ao redor o cheiro de churrasco se espalha pelo ar frio aquecido o coração do homem bate mais forte o ar quente contamina o ar frio moléculas em revolução espalham-se em estratégias químico-físicas efêmeras um cheiro agradável de carne assada domina um espaço circunscrito como uma ilha de calor e vida diante da caça sobre a pirâmide de pedra seu estômago se movimenta em convulsões algo libidinosas o desejo o queima por dentro seu corpo faminto se lança sobre a lebre assada e ele devora deliciosamente a carne com vontade selvagem o fogo arde e o crepitar da madeira reverbera através da transparente e sólida atmosfera gelada o vidro compacto se rompe em cadeia o ar quente se impõe quebrando as poderosas e vidrentas barreiras de ar frio com prazer o homem se refestela saboreando sôfrego a caça com o ar e o aroma quente do churrasco o gelo retrocede gentilmente em seu próprio espaço o forte odor de carne assada chega ao olfato das corujas-da-montanha às centenas elas despertam do sono diurno e deixam os ninhos com seus filhotes dormindo seu vôo rápido e silencioso risca a atmosfera rarefeita em direção ao apelo do aroma do assado em minutos elas rodeiam o homem a certa distância com seu olhar penetrante cravado no churrasco enquanto come com avidez o homem observa surpreso a insólita platéia seu olhar percorre uma perfeita linha curva em direção aos olhares fixos das corujas ele não tem dúvidas de que a presença delas representa uma ameaça à sua integridade física se não largar sem demora a refeição um vento gelado entra pela sua boca e narinas se chocando com o calor no interior do seu estômago com os movimentos peristálticos acionados pela comida já em processo de digestão seu corpo quente gela numa fração de segundos petrificado arregala os olhos sobre os grandes e fixos olhos das corujas que o cercam ameaçadoras uma onda de calor se sobrepõe ao frio que se apoderou dele segundos antes seu corpo se projeta no alvo espaço seus pés vencem a resistência da neve e marcham em fuga seu coração há pouco letárgico dispara seu corpo agora é uma máquina acelerada que rompe a barreira gelada e opressiva em busca de segurança ele sabe que as corujas querem só a carne assada mas um ímpeto de sobrevivência o impele ao abrigo mais próximo avançando sobre a densa camada de neve que atinge seus joelhos chega a uma gruta sua morada desde que escalou o topo da montanha não muito profunda nem muito alta nas suas paredes ele desenhou corujas lebres e outros pequenos animais da montanha além de rochas paisagens montanhas cobertas de neve e pendurou fotos registros de sua vida antes da subida à montanha sua casa amigos família animais de estimação olha aquelas fotos não há qualquer transparência nelas as imagens antigas se justapõem pálidas em processo de desintegração fotos da montanha se misturam às outras imagens reiterando a opacidade do seu olhar morcegos-da-montanha se alojam no interior da gruta a companhia dos morcegos não o assusta ao contrário do que sentiu com as corujas o temor entre o homem e os morcegos os iguala a sua incômoda presença num mesmo e inevitável espaço os fragiliza a ponto de torná-los quase invisíveis restando um resquício de uma remota crispação um irritante e quase fóssil de uma desconfiança partilhada a contragosto uma opaca resignação residual de convivências convenientes dependurados nas paredes e teto da gruta imagens e morcegos se confundem na noite gelada da montanha só mais essa noite e me mudo dessa gruta os morcegos-da-montanha jamais sairão daqui amanhã ainda que sob tempestade vou procurar outro lugar qualquer reentrância capaz de me proteger da neve a urina e as fezes dos morcegos caem sobre as fotos a acidez e a umidade do guano corroem e desmancham as imagens o cheiro de urina e fezes de morcego se espalha pela gruta e impregna seu interior suas paredes e teto o forte e desagradável cheiro turva o olfato e a paciência do homem que num rasgo de raiva sai da caverna correndo exasperado e desesperado à procura de outro abrigo muito antes do dia irromper flocos de neve caem sobre o seu rosto não com suavidade mas com a brutalidade de uma borrasca a neve que cobre os seus joelhos e a violência da ventania tornam seus movimentos desajeitados e incertos seu corpo parece não obedecer à sua vontade ele se projeta para a frente na tentativa de vencer a resistência da tempestade lembra-se de um lugar que tinha visto há muito tempo muito longe de onde está é para lá que seu corpo em movimento mecânico se dirige não mais o odor mortalmente fétido de urina e fezes de morcegos jura repetindo como uma ladainha o vento frio e cortante parecia parti-lo ao meio ou em mil pedaços uma sinfonia de assobios agudos penetra nos seus tímpanos não está escuro a lua cheia brilha no céu estrelado o vento e a neve fustigam o homem que mal consegue andar ele se arrasta durante horas seu corpo parece despedaçado chega finalmente ao local procurado: duas grandes pedras paralelas que se encontram na parte de cima e formam um “v” de ponta cabeça não chegava a ser uma gruta mas uma boa reentrância exausto protegido da borrasca e bem longe dos morcegos seu corpo se estende sobre uma espécie de cavidade no chão ao fundo da reentrância lá fora a ventania sibila em vários níveis ou camadas de sons agudos uma multidão de morcegos hematófagos e vorazes paira sobre ele tentando atacá-lo a noite inteira seu corpo arde em febre alta a fenda que separa mais da metade da parte de cima da de baixo vai aumentando até ele escapar da corda em que estava pendurado em queda livre à mercê do abismo acorda assustado já é dia a tempestade ainda não se acalmou a coruja voa na manhã cinzenta levando a última refeição ou o café-da-manhã dos filhotes para depois descansar até a noite a tempestade continua furiosa a tarde permanece escura com um tom cinza que se aprofunda até o cair da noite que chega mais cedo o homem passa o dia inteiro sentado olhando a tempestade ouvindo os assovios da ventania seus ouvidos parecem anestesiados pela profusão de sons agudos incessantes a neve castiga a montanha ininterruptamente o vento sopra como uma litania uma sonoridade previsível monocórdia e hipnótica atrás dele jaz um esqueleto humano observa paralisado e indiferente em bom estado não pode estimar há quanto tempo está ali e nem a que sexo pertence jogado no chão o esqueleto de ossos tão brancos quanto a neve começa a se mexer primeiro ele se senta e permanece nessa posição por alguns minutos com uma perna esticada a outra dobrada e um braço apoiado no joelho parece pensar então apóia a outra mão no chão devagar vai se levantando já em pé de braços cruzados ele parece me fitar fica parado como se estivesse olhando para a neve devagar caminha para fora a tempestade já se acalmou e a neve cai em delicados flocos no limiar da entrada ele pára e aprecia a neve caindo corre para fora e esboça uma dança esquisita parece um samba desengonçado evolui com patética desenvoltura ele feixe de ossos brancos sobre a neve e a paisagem branca requebra com a mesma leveza que caem os flocos de neve está esfuziante e acho que sorri para mim estou na entrada da reentrância olhando-o evoluir lá fora ainda dançando ele se aproxima e puxa minha mão como um convite à dança então dizendo não sei dançar não quero eu o empurro contra a parede ao lado ele se desmonta inteiro o frio me invade me levanto vou até a entrada da gruta olhar a paisagem depois da tempestade a tarde está clara mas permanece fria o homem olha para dentro da reentrância e vê ossos humanos amontoados no chão ao pé da parede passa horas montando com infinita paciência e meticulosa atenção todo o esqueleto o sol brilha e o homem sai tranqüilo da sua toca faminto procura as armadilhas que tinha deixado há dias encontra em uma delas uma lebre congelada feliz retorna à toca e assa a caça ao lado do companheiro esqueleto a lenha crepita na fogueira quebrando a vidraça compacta do silêncio o ruído agradável e familiar parece confidenciar a ele palavras quentes as quais seus sentidos interpretam com voluptuosa alegria perto do fogo o calor o invade e o domina sente seu sangue correr rápido pelas suas veias seu corpo todo arde com o calor olha para o esqueleto à sua frente como a um companheiro e pensa “bem talvez seja melhor assim” desvia o olhar ao fogo acompanhando fixamente a dança das labaredas hipnotizado pelas cores ardentes o calor e a intensidade do fogo suas chamas que rompem o reinado da aridez e da frieza suas idéias se embaralham e seu corpo permanece encharcado de suor come com voracidade o coelho depois limpa cuidadosamente seu esqueleto embora com a mesma avidez e ansiedade com que o devorou quando termina o serviço estende o esqueleto da lebre ao lado do humano fica em pé observando-os durante longo tempo analisando cada articulação cada osso cada curva as diferenças e semelhanças entre um e outro a lenha crepita na fogueira com olhos vidrados observa absorto o bailado das labaredas seu corpo molhado treme assaltado por uma onda repentina de calafrios tira com lentidão suas roupas nu senta-se com os joelhos dobrados contra o peito abraçando as pernas as costas ligeiramente curvadas boquiaberto olhos imóveis em frente aos esqueletos parece não pensar em nada o frio não o afeta começa a balbuciar sílabas ou monossílabos incompreensíveis em pouco tempo pronuncia palavras num idioma que nem ele mesmo entende fala desgovernado num acesso fisiológico de incontinência verbal levanta-se e continua pronunciando palavras incompreensíveis encadeando uma crescente e histérica litania com entusiasmo gesticula em descontrole motor andando sem parar ao redor dos esqueletos acelera o andar esboça uns pulos que aos poucos se convertem em dança de início acanhada e desajeitada depois ganha ritmo a dança vai ficando cadenciada e coordenada a estranha fala se transforma primeiro num cantarolar anômalo seguida de uma música dissonante voz desafinada que em pouco tempo numa drástica mudança se reduz a fortes gritos de pavor arrombando a transparente e gélida cortina de vidro do dia ou da noite tanto faz sob torpor olha ao redor de si o vácuo apenas o vácuo como objeto mecânico em movimento desacelerado se deita exausto semblante inexpressivo como uma máscara olhos cerrados ao lado dos dois esqueletos
Palavras em Transe - tela 9 (2008)
Acrílica s/ tela
346,5 cm (diâmetro)

0 comentários:

Postar um comentário