segunda-feira, 10 de novembro de 2008

A vídeo-instalação de Raquel Garbelotti para a XXV Bienal de São Paulo é composta de três estações ferroviárias abandonadas: Agulhas Negras e Engenheiro Passos, em Resende (RJ) e Queluz (SP). São imagens paradas, quase fotográficas, que com olhar contemplativo investigam e parecem perguntar o porquê do abandono. O silêncio que as imagens suscitam é reforçado pelo contraste dos sons da natureza, dos moradores que ocupam uma das estações e do ronco permanente de carros e caminhões que transitam pela Via Dutra, paralela à ferrovia.
Memória e esquecimento são componentes de um mesmo sistema e estão interligados através de uma intrincada, contraditória e orgânica cadeia onde o homem desempenha função fundamental. Esse dinamismo é uma infinita rede de paradoxos, um emaranhado de situações caóticas. O oblívio a que estão submetidos esses objetos arquitetônicos, as ocupações e usos que se fazem deles nos dias que correm não têm nenhuma relação com a sua utilidade original. Mas, essas construções parecem não lamentar a sua atual condição. É como se elas se resignassem a um destino inescapável e comum a todas as coisas: a obsolescência dos corpos, vida e morte, memória e esquecimento.
O abandono é complexo e talvez sua tranqüilidade resignada venha das novas apropriações que o homem, com suas velhas necessidades, faz dele ou a Natureza se encarrega de preencher. Podemos notar isso através da observação dos movimentos dos homens no vídeo, dos sons dos pássaros, ventos e vozes humanas, indícios de um cotidiano aparentemente tranqüilo e sem maiores sobressaltos.
Na contramão, o esquecimento e a Memória Universal e humana têm uma turbulência e urgência ressaltadas pelo barulho dos motores que trafegam com pressa pela Via Dutra. São índices dissonantes que podem revelar a balbúrdia angustiante da existência humana, conflitante desde a sua gênese. O esquecimento e a memória coexistem assim como o silêncio e o ruído.
O surto tecnológico propiciado pela Revolução Industrial a partir da segunda metade do século 18 e ao longo do século 19, do qual o trem é um dos seus depositários e ícones, resultou na substituição desse veículo pelo carro no século 20. Além de ser eficaz em sua velocidade e praticidade, o carro proporciona a sensação de individualidade e privacidade, valores tão caros ao imaginário dos séculos 20 e 21. A industrialização e os lobbies das grandes empresas envolvidas, direta ou indiretamente, no incremento e manutenção do automóvel, têm imposto este veículo como um dos ícones de nossos dias.
O trem, ou melhor, a sua carcaça, em alguns momentos aparece no
vídeo como um dinossauro tecnológico que vem nos assombrar e nos dizer que a superação dos meios e seus usos é resultado de uma relação tensa travada entre a Natureza e o homem. Um conflito surdo e ruidoso no qual esquecimento e memória se tocam e se chocam.
A projeção do vídeo à altura do rodapé, remete ao lúdico e ao universo infantil que têm o solo como referência. O trabalho da artista, aliás, sempre tangenciou a fixação adulta pela miniatura com o colecionismo de microbjetos, e, consequentemente, à infância e seus fantasmas, fase em que desejos recônditos e os complexos podem se fixar na personalidade projetando seus ecos para o resto da vida. São elementos de seu trabalho, mínimos armários, cadeiras, kits de casas e estações de trem em estilo europeu (não que Garbelotti prefira o estilo, mas porque há um verdadeiro mercado produtor e consumidor deste tipo de jogo no velho continente). Pródigo material para reflexões sobre conceitos ligados, principalmente, à arquitetura e à memória.

A escala reduzida oferece a oportunidade para se observar as dimensões, os lugares das coisas no mundo e os problemas que advém da instabilidade que a passagem do tempo reserva aos objetos. A estabilidade e permanência das coisas depende de uma série de fatores temporais, mecanismos políticos, sociais e econômicos próprios de uma época, que se transmutam e geram novos conceitos e idéias os quais descartam objetos-símbolos de antigas concepções. A miniatura carrega um quê de ironia com idéias e coisas tornadas fora de lugar com o incessante impulso tecnicista do homem moderno. Jonathan Swift quando escreve “As Viagens de Gulliver” destila comentários alegóricos ácidos à pequenez e mediocridade da sociedade inglesa de seu tempo. Em certo trecho de “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carrol, a protagonista, acossada pela obesa Rainha de Copas e sua patética guarda composta das cartas do baralho, come um biscoito mágico e fica gigantesca.

A reviravolta evidencia o quão ridículos são a Rainha, seus guardas e toda a sua corte. Ao mesmo tempo, Alice torna-se arrogante, adquire uma auto-confiança desmedida em suas novas dimensões avantajadas.
Os kits de Raquel Garbelotti desvelam as sutilezas de um mundo pequeno e descartável, construído pelo homem com o cálculo de matemático megalomaníaco, onde o “jogo da vida” é encarado como um fim em si mesmo.
A alteração da escala natural pode comentar e criticar com humor e sutileza o egoísmo e as mesquinharias que impulsionam e podem estar por trás de qualquer aparato tecnológico. A suplantação de um sistema não chega a nós com a pureza ou a lisura que gostaríamos ou idealizamos. As dimensões reduzidas ou ampliadas problematizam os objetos e nos proporcionam a percepção crítica acerca de seus lugares e funções bem como suas relações conflitantes e ásperas com o próprio sistema que os concebeu.


__A __MEMÓRIA __É __O __OLHO __ABERTO___DA ___MENTE


“Mais recordações tenho eu que as que tiveram todos os homens desde que o mundo é mundo”. No conto “Funes, O Memorioso”, o escritor Jorge Luis Borges narra a história de um homem com uma memória tão prodigiosa que a diferença entre lembrar, imaginar e sonhar acabava sendo nenhuma. A memória de Funes era tão infinita quanto o Universo. Mais que isso: sua memória parecia ser a Memória Universal. O que parecia uma boa qualidade passa a ser crescente ameaça, funesta característica com sua fúria incontrolável. O homem sonha com as respostas supondo. Se não as viveu, imagina.
Na tentativa de buscar a explosão primordial (Big Bang), astrônomos captaram nos confins do universo, através de poderoso telescópio, as radiações de fundo, registros ou fósseis que correspondem aos primeiros momentos do Cosmo. A procura humana pelas respostas às suas perguntas mais profundas é infinita. O edifício que o ser humano tem construído em busca do saber absoluto é o projeto de uma arquitetura que tem os verbos sonhar, imaginar e recordar como alicerces e tijolos. Seus sonhos e desejos ocultos estão incógnitos nos confins do universo ou, no mínimo, enterrados nas camadas mais profundas do nosso planeta.
O que pode haver de mais genuíno nestes sonhos se arrisca a deslizar no assoalho reluzente mas escorregadio da vaidade. A Natureza oferece a concretização dos sonhos, imaginações e lembranças. Dá ao homem a chance de se perceber íntegro e integrado ao Absoluto. Mas abre a porta estreita de um labirinto vertiginoso que se descortina enigmático ecoando em seus corredores escuros e fantasmagóricos a fatídica frase: “Decifra-me ou devoro-te”.
A imagem virtual da esfinge que desafiou Édipo a decifrar o seu enigma surge para o homem no labirinto de espelhos do conhecimento onde o que ele tem que descobrir, ou constatar, é que não sabe nada. “Só sei que nada sei”, disse Sócrates. A arquitetura do conhecimento adquire vida própria e tenta registrar segredos insondáveis e abissais em seus alicerces e tijolos. Nos abismos da ignorância o conhecimento escapa à sedenta curiosidade humana. A Natureza parece não se permitir ser inteiramente decifrada. O seu reflexo no espelho do conhecimento é impreciso. As bases do conhecimento, tão caras ao ser humano, parecem sempre estar à beira da dissolução ou destruição.
A árdua construção do edifício do conhecimento evoca os ecos trágicos da Torre de Babel. A arquitetura dessa construção reflete, a contragosto, a arquitetura caótica de sua destruição. O conhecimento talvez esteja contaminado por um vírus primevo que nos impede de decifrar os enigmas primordiais.
Os cadáveres ou estão enterrados ou estão à luz dos dias do homem, tanto faz. Os fósseis dos dinossauros ou dos nossos ancestrais afloram à superfície da Gaia na forma de dúbios presentes como se ela dissesse: “Aí está, não é só você que tem o direito de destruir”. A relapsa memória recolhe velhos ossos na mesma proporção que acumula novos cadáveres.
No filme, “Elogio ao Amor” de Jean-Luc Godard um personagem sentencia: “Não há resistência sem memória e universalismo”. A memória pode ser uma força libertadora. Para os que a rejeitam resta a barbárie, maldição que os acusa e os condena ao ostracismo da história universal.


_________MEMÓRIA_________ ARQUIVO___________HISTÓRIA


Me vêm á mente as pinturas metafísicas de Giorgio de Chirico. O vazio dos espaços arquitetônicos que aludem a uma utopia do mundo clássico e à pequenez dos homens reduzidos a bonecos ou sombras à margem destes espaços, são como cenários que nada exprimem, exceto seu próprio mal-estar. O homem constrói cenários e neles tenta preencher seu próprio vazio. Os sábios edifícios que o ser humano constrói são as propriedades metafóricas do seu vazio.
Vejo em minha mente os arquetípicos relógios derretidos de Salvador Dali. A memória persiste através dos engenhos que tentam captar o tempo e o saber, mas jaz derretendo sob o sol inclemente, o calor desértico e a luz cegante da fugidia Sabedoria Universal.
Volto ao conto “Funes, O Memorioso”, de Borges. “Minha memória, senhor, é como despejadouro de lixo”, diz o pobre Funes. As estações circulares ou ziguezagueantes da memória são como lixeiras ou cemitérios. Ruínas ou escombros às quais voltamos
em eventuais e dolorosas viagens turísticas. Em sua sanha civilizatória, o homem tem imposto a si mesmo o exaustivo papel de lixeiro da Memória Universal – acervo fulgurante de imagens que o Universo tem criado e ele, o homem, tem decodificado pelos milênios afora. Mas elas podem voltar à superfície como os mortos-vivos de Poltergeist, que vêm para expulsar os invasores do seu cemitério ou dos filmes-pesadelo de George Romero. “Somos governados pelos mortos”, disse alguém. O poder da memória pode nos anular mas, por outro lado, é o que nos mantém vivos e íntegros.
A tecnologia reforça a vontade, a velocidade e a ânsia feroz de conhecer. Os trens, carros e ônibus tentam alcançar, ansiosos, os horizontes da sabedoria. Mas os esperam as estações da memória com suas quimeras inatingíveis e indecifráveis. Como a nos lembrar que atrás de qualquer conhecimento espreita a ignorância e embaixo de toda memória repousa o olvido.






Texto do catálogo da vídeo-instalação da artista Raquel Garbelotti para a XXV Bienal de São Paulo - 2002

Fotos: Orlando Maneschy




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