domingo, 9 de novembro de 2008

Dentre os objetos utilitários os que considero ter a auto-estima mais baixa são os guarda- chuvas e as sacolinhas de plástico. Os guarda-chuvas gozam de auto-estima mais elevada. São escolhidos e comprados em lojas ou camelôs, por critérios como cor, padronagem, qualidade e preço, para serem mantidos em casa ou em bolsas. Há, portanto, o fator afetivo que nos aproxima deles. São, talvez, as maiores vítimas do esquecimento.
As sacolas plásticas pertencem à outra categoria de objetos: os utilitários descartáveis. Artefatos da produção industrial em larga escala parecem habitar uma região límbica entre os objetos utilitários e os descartáveis, ou o purgatório entre o céu e o inferno da sociedade de consumo. Embora, em sua origem, sejam usadas como embalagem, com frequência, num prolongamento de sua vida útil, na falta de uma sacola “de verdade”, desempenham o papel desta. Invólucros do dia-a-dia, elas se impõem com sua onipresença ambígua num fenômeno de multiplicação infinita que revela muito sobre nossos hábitos e ímpetos consumistas. Em sua impessoalidade de objeto vulgar, elas são, ao mesmo tempo, testemunhas e cúmplices do tráfico e tráfego de nossas vontades e impulsos intermediados pelo impacto e os descaminhos da propaganda em nossas vidas. Resíduos de grande visibilidade, as sacolas convivem com a função anônima de ser um objeto que simetriza a fugacidade de nossos impulsos em estabelecer rápidas relações de câmbio. A velocidade com que circulam em nossas mãos e depois são passadas a outros destinos, senão o lixo, faz delas objetos quase invisíveis. Por trás dessa superestrutura movediça e cambiante, a relação afetiva que estabelecemos com produtos como esse é nenhuma. Podemos até entrever rápida relação estética com uma ou outra sacola de design ou logotipos mais diferenciados mas, num mundo inflacionado por objetos descartáveis, seria catastrófico, por prazer estético, acumularmos tais produtos.
Quem mais senão Jac Leirner, com seu pendor incontrolável para colecionar objetos-alvo da desatenção contemporânea, se entregaria a tal tarefa? Quem conhece o trabalho da artista sabe que o acúmulo e o colecionismo de certas coisas triviais e descartáveis são fundamentos importantes, e características, para a compreensão do seu trabalho. Sacolas de plástico já foram utilizadas anteriormente pela artista, mas circunscritas ao circuito dos museus e, por extensão, da arte, em que, num esperto jogo metalinguístico, Jac tecia ironias às grifes do mercado avançado da arte, ao qual, como artista de sucesso, ela tem acesso. À trajetória errática dos objetos de câmbio, bem como a seus percursos rápidos e efêmeros, a artista propõe uma pausa ou tempo para observarmos as sacolas como (por que não?) companheiras anônimas e quase sempre inseparáveis de nossas errâncias. O que para nós representam atos insignificantes e fortuitos, porque parte de nossa intimidade cotidiana, para Jac Leirner são objetos que, depositários de nossa intimidade social, desvelam ações revestidas de uma importância que, se podem se encerrar em si mesmas, guardam em seu bojo uma inerente significação,
se estendendo e se intercomunicando com outras ações (nossas e de outras pessoas), percorrendo e perfazendo redes ou circuitos que evidenciam a complexidade da comunicação humana. Em sua mísera condição descartável, desenhadas e fabricadas para durarem certo tempo, como gado a caminho do matadouro, as sacolas plásticas são eliminadas tão rápido quanto apareceram num processo de reposição que os nossos sentidos propositalmente desatentos parecem não ser capazes de captar. Sua existência corresponde ao tempo do uso que fazemos delas, de nada importa se continuarão, juntamente com a ação que justificou a sua aquisição, a existir materialmente na lixeira de nossas vidas. Não esqueçamos que esses artefatos são de plástico, material que, questão ecológica presente na ordem do dia, leva algumas centenas de anos para se deteriorar. A artista como que seqüestra (ou socorre) alguns desses objetos do alucinante círculo ou ciclo volátil a que estão destinados. Com isso, opera uma espécie de curto-circuito ou abrupta interrupção sobre o inexorável processo que sempre termina em certeiro descarte. Livres desse ciclo, as sacolas são submetidas a minucioso trabalho de descarnamento ou evisceração que Jac Leirner realiza com incisões geométrica e cirurgicamente precisas. Como cirurgiã plástica, não sem certa dose de crueldade, ela suprime das sacolas a logomarca ou detalhes impressos, signos que as tornam clones de plástico e as ligam como cordão umbilical ao ininterrupto e frenético circuito do consumo, problematizando sua condição social e instaurando um esvaziamento de seu DNA comercial. Depois dessa intervenção cirúrgica, ela procede a um tipo de empalhamento ou mumificação, recheando as sacolas com enchimento de poliéster e finalmente costurando-as. Objetos bidimensionais desenhados e fabricados para embalar ou envolver e com forte inclinação tridimensional devido aos conteúdos que acondicionam, as sacolas ficam, com o enchimento, no meio termo entre estruturas bi e tridimensionais. Desconstruídas, mutiladas e vazadas, seu caráter volúvel desaparece por completo, mais parecendo agora molduras. Mas molduras de quê? As áreas vazadas são como janelas abertas para o nada que nos convidam para zonas vazias e desconhecidas. No mínimo podem nos deixar entrever, com ironia fina e escorregadia, ecos do construtivismo. Sob o impacto da desconstrução operada, do descarte ao destaque, sua condição corpórea (de plástico) e seu design (curviretilíneo) são paradoxalmente reiterados, estimulando o espectador a observar a felicidade de sua forma utilitária, com seu rigor formal, sintético e pragmático exemplares, muito além de sua digna função e objeto de propaganda. Na moldura se insinua o fantasma da Bauhaus para desaparecer, etéreo, sob quantas camadas de tinta, quantas figuras ou paisagens imaginárias pudermos conceber a fim de não suportarmos o vazio que nossos olhos inconformados insistem em tentar preencher. Um suave sopro da ética construtivista se manifesta acompanhado de um (in)discreto e sardônico sorriso duchampiano. Na zona limítrofe entre a vulgarização e a sofisticação, entre a forma racional e a função social que o objeto, ainda que mutilado, teima em reivindicar para si, o pastiche não nos deixa duvidar da condição íntegra de sua forma. Com a mutilação, a artista nos devolve o objeto em sua pureza funcional e pragmática, sem sua máscara social e comercial que, talvez, o distanciasse de nós. Despidas de qualquer impostura, as sacolas parecem nos pedir compreensão e, quais espelhos ou janelas da alma, nos sugerir que, num sistema volúvel que a toda hora tenta desfigurar ou mutilar nossos valores, não seria má idéia olharmos, nem que seja de vez em quando, para dentro de nós mesmos.




Osso 008 - Jac Leirner


De 3 de outubro a 16 de novembro de 2008

Terça a sexta, das 12 às 21h

Sábados, domingos e feriados, das 10 às 18h

Centro Universitário Maria Antonia

Rua Maria Antonia, 294 - Vila Buarque

São Paulo - SP

Tel.: 3255-7182

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