sexta-feira, 7 de maio de 2010

Cidades em Si




O homem se espelha. Espia as linhas sulcadas que o tempo vem desenhando no seu rosto.


Ele se surpreende se repetindo. Horror a repetição, ao tédio da clonagem dos gestos, das palavras, dos sentimentos que se fecham em si mesmos.


Ele se pega inesperado ao acaso e à revelia de eventos insólitos que parecem se repetir.


Todos os recantos da cidade não são mais novidade. Lugares exauridos por olhares indiferentes e melancólicos. Não olhar.


Todas as cidades do mundo inexistem, exaustas de serem dissecadas por olhos gulosos ou desatentos. Desatenção corrosiva.


Olhares corroídos pela indiferença. Enferrujados. Olhares em ruínas.


O olhar sedento procura novidades nos restos de uma cidade. Sedento por novidades: reiteração do cansaço.


O desvio de um caminho pré-visto é a forma que os olhos cansados do homem procuram achar. Desvias.


O desenho que o homem deseja designa a forma antevista, mas nunca totalmente acabada.


Desejo inesperar. Desvejo.


O homem projeta o gesto e a fala revestindo-os de descompromisso. Performa. Descumpre.


Os caminhos exaustos da cidade revivem quando o homem passa. Crianças brincam alegres. Descaminhos de um olhar vão. Desvãos.


Os caminhos moribundos da cidade morrem quando o homem repassa.


A agonia do olhar lança uma poeira letal sobre a cidade.


Um manto de fuligem cai sobre os olhos do homem. Impossível (re) (a) ver.

Os olhares em ruínas se projetam na arquitetura.


A decomposição do ver simetriza a decomposição do viver.


A falência do olhar ecoa a exaustão do estar.


A corrosão do espaço urbano emula o cansaço humano.


O olhar doente diagnostica a decadência. O homem perambula trôpego nas ruas em escombros. Sintomas do mal-estar.


O olhar envelhecido repele a repetição do traçado das ruas com seu desenho tão já visto. O homem ainda tenta redesenhar as vias onde seus olhos insistem ver escombros. Em vão.


Enquanto em seus olhos e(s)coam ruínas, recusa-se a dar de ombros. Rever.


Seu espírito exulta quando redesenha o feio traçado de um fantasma arquitetônico. Seu inferno ético tem os limites da sua resignação estética.


O homem percorre com passos bêbados as mesmas ruas todas as noites. Redesenha com pegadas incertas o íntimo espaço urbano. Espassa.


Como num rio os passos do homem acrescentam volume às águas invisíveis das ruas que lhe causam indiferença.


Seus inúmeros passos se somam ao volume infinito dos passos dos infinitos transeuntes que já passaram, passam e passarão por ali. Ajudam a esculpir um gigantesco e imaginário totem de passos que cresce infinitamente.



O olhar do homem se soma aos milhares de olhares indiferentes que exaurem cada milímetro do espaço urbano.


Os olhares se cruzam e se absorvem exaustos e desatentos esvaziando e esvaindo as possibilidades infinitas do ver. Esgotamento da observação.


A visão forma desenhos ou esculturas que variam conforme o indivíduo, suas intenções e as das outras pessoas. São formas que vão da simetria, quando os olhares se cruzam cúmplices e os desejos são semelhantes, até a total assimetria quando os olhares expressam sentimentos discrepantes.

O homem absorve a cidade como tem sorvido litros de álcool nos infinitos bares da cidade.


Seu olhar é uma janela que se abre exuberante e se fecha exaurida.


Seu olhar destrói a cidade, recria a feia paisagem, projeta a beleza e se desencanta depois.

Novos edifícios se erguem: cômodos entupidos de boas intenções. Seus alicerces, porém, são erigidos com os tijolos da poeira da indiferença. Etéreos infernos da fuligem do desencanto.


O redesenho do ver não exclui a possibilidade da dor.


Olhar dói.


Imerso na dor ou na doença e, por extensão, na arquitetura em decadência o olhar somatiza patologias sociais que geram o mal-estar urbano.


A fala do homem acrescenta volume sonoro à balbúrdia urbana. O texto projeta esculturas que variam de acordo com o que está sendo dito e a maneira como se diz. Esculturas plasmadas de emoções.


A algazarra se mistura ao caos sonoro urbano. Cresce em progressão geométrica a maçaroca arquitetônica assimétrica e dissonante que se iguala à feia arquitetura dos edifícios.


Uma sinfonia cacofônica audiovisual. Bizarra, áspera e gigantesca escultura que se locomove em ondas imperfeitas e incompletas com destino a praia nenhuma.


Os sons da cidade são objetos cortantes como os vetores que os detonam.


A partitura urbana tem a textura rápida, ríspida e áspera da violência.


As arquiteturas sonoras e concretas evidenciam o caos reinante. Somadas, completam o cerco ao homem.


A jaula urbana camufla e revela espasmos de violência.


A tensão se manifesta por surtos esparsos em recantos pontuais.


O sangue brota dos subterrâneos por fissuras ou fendas tingindo e inundando as ruas de vermelho.


O sangue jorra e escorre denso arrasando a suposta ordem urbana.


As erupções cutâneas da urbe desvelam a violência latente.


As artérias entupidas da cidade se transformam em expressos rios de sangue.


A repetição de sensações represadas desperta reações violentas.


A violência explode quando a sensação de prisão é sentida e replicada aos milhões.


A irracionalidade do traçado urbano é a ditadura da forma rápida. Ela simetriza a irracionalidade humana.


A razão das ruas coabita com a desrazão humana.


A razão apoiada apenas na forma é rasa e vã.


A desrazão do desenho urbano simetriza o seu uso irracional.


A tentativa de abolir o acaso e a razão da forma urbana reforça o drama: a vontade incontrolável de submeter o desconhecido.


O desejo de suprimir o acaso esbarra nos anseios e receios de bilhões de humanos.


O desconhecido espreita nas esquinas turbinado por medos e credos multiplicados aos bilhões.


O olhar exausto ignora que o perigo está camuflado na rotina.


Sob a luz ofuscante dos holofotes subjaz o perigo alimentado pelo medo multiplicado aos bilhões.


A cidade é a tentativa coletiva de abolir o perigo natural.


A cidade é a concretização da arquitetura do medo humano atávico.


O olhar desenha o espaço e este se revela. O ver desvela. O olho é o espaço. Uma vez cansado, corrompido está o olhar.


O olhar organiza o espaço vivenciando-o afetivamente. Os olhos da cidade são zilhões de câmeras ligadas ao mesmo tempo registrando narrativas urbanas.


O espaço urbano projeta visões espaciais do interior humano.


A macro-repetição de certas idéias ou ações pode conduzir à criação ou estagnação.


A repetição das coisas é a reprodução sexuada da forma. O caos urbano é a promiscuidade desenfreada da forma.


As linhas do rosto do homem compõem uma paisagem de rios e afluentes que com o passar dos anos se tornarão mais profundos e mais secos.


Estas linhas configuram um labirinto de (des)caminhos que ele tem passado e repassado com o passar do tempo.


As linhas do corpo do homem são a representação epidérmica e fisiológica da existência do tempo. Canais que manifestam nele a temporalidade.


As linhas do corpo do homem compõem uma paisagem de rios secos e seus afluentes que com os anos se aprofundam e se tornam ainda mais secos.


Cada uma destas linhas pode ser interpretada como a afirmação do tempo que flui através das estradas, avenidas, ruas, esquinas e becos que o homem percorre.


Em lento movimento a natureza desenha, pinta e esculpe. Ela se diverte como uma criança, que em lance simultâneo, formaliza suas experiências.


O aparecimento de mais linhas sobre a terra, a cidade e o rosto do homem mostra que a natureza é potencialmente um artista obssessivo e incansável.


A natureza experimenta.


Se o homem habita um mundo que tem a experimentação como base deve se deixar experimentar.


A experimentação requer método. A experimentação é a quase repetição. As mudanças são espasmos entre as repetições.


Com o homem o tempo se torna método. A natureza já tem seus próprios métodos. A invenção do método vem da observação da natureza. Da repetição com brechas. O tédio é aparente.


A repetição é a obsessão da forma para manter-se e, ao mesmo tempo, ousar ser outra. A natureza sistematiza o acaso.


A repetição combinada a pontuais mudanças são brechas ou respiradouros para a novidade. Assim, as mudanças se intensificam originando outra forma a partir da anterior.


A cidade é composta de olhares, passos, gestos, vozes, ruídos generalizados que nunca se repetem da mesma maneira parecendo nunca se exaurir ou ruídos de um estado de perene exaustão.





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