segunda-feira, 29 de setembro de 2008

o vento abre com violência uma das portas mas as outras permanecem fechadas o vento forte força as outras portas uma a uma aos poucos elas se abrem o vento abrupto entra pelas janelas escancaradas as pesadas cortinas são arremessadas para cima e para os lados o vento passeia soberano pelos corredores do hospital vazio as camas os aparelhos a recepção tudo está tão velho mas ainda nos seus lugares originais o vento visita quase simultaneamente todos os recintos do antigo hospital parece de alguma maneira que os doentes ainda estão lá com suas dores achaques e aflições os médicos preocupados abúlicos e angustiados os parentes amigos e outros tensos aflitos e angustiados enfermeiras e enfermeiros transitando apressados abúlicos ou angustiados vagando pelos corredores as paredes e o assoalho estão rachados plantas crescem pelas frestas e gretas portas e janelas velhas mas não o suficiente para deixarem de ser os brinquedos favoritos do vento ele se diverte altera sua intensidade e impacto sobre as portas e janelas como se estivesse treinando e exercitando o seu sopro os corredores são onde ele se sente mais livre e ao mesmo tempo preso como num jogo ele que está acostumado aos grandes espaços altera seu sentido e modulações ora em ondas ora em movimentos circulares como remoinhos em sentido vertical ou horizontal sempre mudando a intensidade desses fenômenos avança pelos corredores quartos e salas e outros recintos e cubículos do antigo hospital lambe toca e varre cada milímetro com a sua presença fluida arrebatadora ou arrasadora mesmo os muitos recintos do hospital são como canais artificiais onde ele pode brincar como uma criança num velho playground levantando o pó ou deslizar como uma serpente invisível a verdade é que ele sempre gostou do hospital desde que começou a ser construído suas linhas curvas e abruptos cortes retilíneos formam inesperados espaços labirínticos onde ainda ele é capaz de se surpreender passeia suave ou veloz sutil ou violento ele trabalha e burila seu ritmo como um músico com suas partituras durante a construção do hospital alguns operários sentiram algo diferente uma vívida atmosfera uma sensação indescritível desencadeada por inexplicável fenômeno muitas vezes as sensações experimentadas não eram das mais agradáveis uma atmosfera sutil e soturna de repente se sobrepunha à leveza cálida de um sopro suave um sopro áspero e gelado percorre os corredores do velho hospital uma frialdade súbita invade os ambientes hospitalares os caprichos do vento se impõem em austera atmosfera a luz vai aos poucos dando lugar a uma suave penumbra que vai se adensando todas as luzes do hospital se acendem o vento frio e áspero permanece arrepiando os sãos e os enfermos o mato cresce caótico sobre o assoalho do velho hospital nem o sol mais brilhante é capaz de descrever os detalhes ocultos e esquecidos por detrás da vegetação inculta que viceja detalhes ainda vívidos as sensações experimentadas pela passagem do vento os sãos e os doentes defrontados com a cálida vertigem de estarem vivos o mato cresce desordenado em todo o hospital algumas paredes estão caídas outras partidas ou com grandes frestas pilhas de tijolos e entulho em geral se acumulam em quase todos os recintos em escombros na penumbra uma mulher enferma acamada sonhava chegando em casa o marido os dois meninos pequenos o cachorro a casa tudo muito vívido em detalhes como sentir a pele macia do bebê ao beijá-lo o cachorro late muito ela se afasta e já está de volta ao hospital o mato cresce alto na velha construção em ruínas o vento cálido sobe lento as escadas ele vai se instalando em silêncio tocando suave em tudo as pessoas se sentiram aquecidas e consoladas o frio passou e doentes médicos enfermeiros parentes e amigos se alegraram com a volta do calor pássaros fazem seus ninhos nos arbustos mais altos besouros mosquitos moscas aranhas sapos rãs cobras ratos escorpiões baratas e outros bichos estão instalados há tempo foram chegando aos poucos primeiro os insetos um beija-flor penetra numa grande flor sai dela coberto de pólen o vento passa quente e sopra sobre suas delicadas penas repletas de pólen que se espalha por todas as direções o tempo quente o vento ausente as pessoas sentem o ar abafado e úmido a chuva se prenuncia mas apenas porque o calor aumentava e o ar pesava muita gente começou a passar mal principalmente crianças idosos e pacientes com problemas respiratórios os médicos e enfermeiros corriam atarantados para salvar o maior número de pessoas que pudessem era um clamor agonizantes muitas pessoas gritavam desesperadas pedidos lancinantes de socorro médicos e enfermeiros não eram suficientes para atender a todos os parentes e amigos faziam o que podiam sem muito sucesso depois de horas o alvoroço começou a diminuir eram muitos os mortos o desespero para salvar vidas deu lugar a outro: o da perda eram choros contidos mas tanta contenção desaguava não raro em espasmos histéricos e catárticos era um clamor a chuva chega com o seu frescor prenunciando uma frente fria que amenizou a atmosfera sufocante chove chove chove o sol brilha intenso o vento com rajadas esporádicas derruba algumas paredes já bastante fragilizadas as escadas sem apoio destruídas ou semi-destruídas levam a lugar nenhum que é para onde o vento vai as escadas em caracol que ficam na ala psiquiátrica foram interditadas a forte chuva e o vento quebraram um galho de uma árvore pra lá de centenária que caiu sobre a clarabóia de vidro ricamente ornamentada que ficava acima dessas escadas os pacientes permaneceram isolados mas assim não estava nada bom pra eles que dependentes de remédios e cuidados especiais precisavam com urgência de seus psicólogos psiquiatras e psicanalistas na impossibilidade de as escadas serem restauradas imediatamente eles não tiveram dúvidas e fizeram terezas e mesmo naquele temporal desceram pelas janelas ao encontro de seus médicos que os receberam com alegria o vento sopra sobre o capim alto que se dobra humilde com uma saudação pelas costas o sol incide sobre as penas verdes e azuis furta-cor dos beija-flores que voam de flor em flor a procura de néctar disputam ávidos as flores com abelhas e besouros e outros insetos e até morcegos noturnos as flores por sua vez disputam entre si a atenção e voracidade do maior número possível de espécies animais que seduzidas por suas formas cores e aromas muitas vezes apelativos vêm sugar seu néctar e saem besuntados de pólen que se espalhará com o vôo e o vento semeando suas espécies por outras paragens é um terreno irregular tem uma parte pantanosa lembrando a sua configuração original todo mundo achou estranho quando um médico rico empreendedor e megalomaníaco anunciou que tinha comprado uma grande propriedade num lugar isolado e pantanoso no meio de uma floresta com árvores mais ou menos baixas e de galhos retorcidos e que iria construir nesse lugar um grande hospital o maior de todos que pesquisasse e tratasse todas as doenças o mais bem aparelhado com os melhores especialistas em cada área da medicina o mais moderno e mais ousado o pântano foi totalmente drenado num ambicioso projeto de engenharia arquitetura e paisagismo foi um processo longo e exaustivo de pesquisa dos materiais e técnicas as mais modernas feito por arquitetos engenheiros e paisagistas dos mais destacados e arrojados em suas áreas os ecologistas começaram a organizar protestos contra a construção do hospital alegando que o lugar onde ia ser construído era área de proteção ambiental os protestos começaram tímidos e pacíficos com poucas pessoas mas em pouco tempo já eram centenas de militantes aguerridos dispostos a fazer qualquer coisa para impedir a construção do hospital foram necessários vários laudos emitidos por vários órgãos governamentais para aprovar a construção por causa das reivindicações das entidades ecológicas e da sociedade em geral que questionavam a legalidade da grande empreitada mas isso não foi o suficiente para aplacar os ânimos dos ecologistas que contra-atacaram alegando corrupção quando este argumento já não convencia mais eles apelaram para a imoralidade do governo em aprovar um projeto tão danoso ao meio-ambiente discutiu-se com fervor na internet TV rádio e jornais o que é imoral moral e seus limites dois anos depois de iniciadas todas as pesquisas de construção desde o projeto arquitetônico até materiais aparelhagem e infra-estrutura em geral foi iniciada a construção do grande hospital não sem alvoroço e comoção com milhares de ativistas jornalistas e fotógrafos do mundo todo policiamento ostensivo um vento fresco e suave sopra sobre o mato crescido e o capim-gordura uma coluna desmorona e com ela o teto com ornamentos como guirlandas douradas indiferentes ao barulho e ao pó o vento passa com delicadeza muito do que restou do hospital continua em pé a maioria das portas janelas e colunas mas o mato e as intempéries apressam a decrepitude da magnífica construção os dois anos seguintes ao início das obras foram difíceis o ímpeto dos ecologistas arrefeceu em quantidade e o número de manifestantes se reduziu muito mas como uma espécie de compensação seus métodos foram se tornando cada vez mais radicais e até mesmo terroristas a vigilância passou a ser rígida noite e dia devido às duas tentativas de sabotagem praticadas por ativistas disfarçados de operários os jardins foram construídos ao mesmo tempo que o hospital foram feitas pesquisas com espécies de plantas da região e de potencial ornamental a mata nativa interagia com o luxuriante jardim com espécies floríferas singelamente exuberantes e árvores frutíferas as cores berrantes das flores seus aromas fortes e apelativos aos insetos beija-flores e morcegos à procura do pólen que há em fartura as frutas doces e ácidas espalhavam seus odores também apelativos na já congestionada atmosfera de cheiros e sabores com a chuva a área alagada do terreno aumenta a água aos poucos vai ocupando o lugar que um dia foi seu aves aquáticas voltam a freqüentar e habitar o pântano ressuscitado jacarés reaparecem vindos de longe atraídos por comida farta parte da antiga construção já está sob as águas um homem caminha devagar pelos corredores do hospital a cada passo percorrido se regozija finalmente sua grande obra foi concluída com ela seu nome se inscreverá para sempre na posteridade suspira profundamente recebendo o vento quente e úmido na cara faz uma careta de desagrado esperava que o vento o recebesse menos árido e hostil respira mais fundo procurando algum fio de frescor na atmosfera abafada ultrapassa uma das portas laterais e ganha os magníficos jardins andando devagar através do labirinto de alamedas examinando algumas plantas sob a luz fulgurante da lua cheia observa um lago onde espreitam jacarés que se banham ao luar estranha a presença desses animais ali seriam parte do projeto paisagístico? inevitáveis como os pássaros insetos e outros animais de menor tamanho? dá de ombros intrigado com a presença dos rudes animais some pelos labirintos do grande jardim enquanto os jacarés descansam sob o luar nas águas cálidas do lago
Palavras em Transe - tela 6 (2007)
Acrílica s/ tela
250,0 cm (diâmetro)

1 comentários:

Unknown disse...

Descrições precisas, cirúrgicas. E sua tela é um arraso. Doris.

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