quinta-feira, 2 de outubro de 2008

o vento sopra assobia sibila e agita com violência as árvores os galhos se retorcem num balanço selvagem como um polvo vegetal de pernas pro ar relâmpagos rasgam o céu raios caem perto dali o fogo queima e se esparrama pela relva seca janelas e portas abertas se agitam abrem e fecham com enorme barulho o vento invade veemente a casa folhas soltas voam em coreografia caótica folhas brancas e amareladas todas as nuances de amarelo folhas impressas de variadas espessuras formatos e dimensões diversas dançam suspensas em vôo alto e aleatório letras se soltam das páginas e saltam para ganhar os ares letras de infinitos tons de laranja amarelo vermelho azul em dança desengonçada e violenta as árvores nuas desfolhadas esqueléticas esquálidas esquemas gráficos no turbilhão que domina e empurra o universo um espelho esférico aparece e desaparece o turbilhão tem como centro a casa as folhas de papel em movimento frenético saem pelas frestas da casa voam alto folhas de muitos tons brancos as letras saem do papel voam e voam embaralhadas passam pelas janelas portas e frestas dominam os ares leves sobrevoam as folhas das árvores caídas no chão as letras flutuam leves como penas no alto e se misturam às nuvens e o espaço espalham-se pelo mundo e pelo universo caldo estelar de letras minúsculos fragmentos delas partículas pairam no éter etéreas se juntam em blocos buscando formar blocos de palavras grandes aglomerados flocos de letras brancas caem com leveza no solo o vento sopra suave letras brancas de tamanhos e formas diferentes se espalham delicadamente repousam sobre qualquer superfície derretem-se e transformam-se em líquido alterando as cores e formas dos objetos sobre os quais repousam as coisas vão crescendo em desordem os lados ou partes dos objetos crescem em desequilíbrio as simétricas formas antes harmônicas equilibradas vão se tornando amorfas deformadas os objetos não param de crescer num tresloucado movimento assimétrico e caótico folhas de papel voam por entre as árvores da grande floresta algumas vão se fundindo às folhas verdes das árvores e outras e mais outras e em pouco tempo todas as folhas verdes transformam-se em folhas de papel branco textos impressos em preto vão preenchendo as folhas como uma máquina escritora invisível primeiro devagar depois mais rápido e tão rápido mas tão rápido que os olhos não conseguiriam distinguir uma coisa da outra então as demais coisas da terra começam também a se transformar em outras e então rápida e continuamente uma coisa é todas as outras e assim ao infinito cada coisa é todas as coisas ao mesmo tempo a permanência das coisas no mundo as torna instáveis e mutáveis tal como o tempo elas são o próprio tempo os olhos já não conseguem enxergar as vertiginosas transformações contaminados e convencidos que estão da permanência das coisas vítima da mutação simultânea o olhar não distingue as imperceptíveis e vertiginosas transformações como a água e o ar que nos dominam nos atravessam e nos envolvem as alvas folhas com negros caracteres se transformam em verdes lentamente primeiro em suave tom amarelo aos poucos mas aos olhos de qualquer ser vivo tão rápido o amarelo vai adquirindo tonalidades de verde até chegarem a um tom intenso tão ofuscante quanto a própria existência o formato retangular vai se alterando os vértices se perdendo o papel vai ganhando consistência e aparência vegetal as folhas brancas que restam voam alto em ondas aleatórias se misturam a milhares de outras folhas brancas que chegam ou passam por acaso o verde intenso das folhas refulge na noite noite noite folhas alvas com textos de letras brancas caem na alva neve repousam as letras deslizam e se desligam do texto fundindo-se à neve brincam livres do papel formando no ar outras palavras outros textos elas se multiplicam e formam grandes blocos e montanhas a algazarra provoca uma avalanche avançam as letras misturadas com neve uma folha gigantesca branquinha flexível flutua diáfana uma coluna de letras em círculo a avalanche furiosa soterra terrenos fósseis de letras e palavras de antigas línguas que foram outrora achados letras excitadas se deixam levar pelas ondas de neve letras escapam entram nas cavernas onde ursos e cobras hibernam para contar histórias amalucadas engraçadas e emocionantes em seus longos sonhos de hibernação sonhos bons de comida farta as serpentes peçonhentas em seus sonhos venenosos aglomeram-se na caverna quente mexem-se convulsivamente formando um trançado frenético como num transe coletivo desacordadas elas se agitam alvoroçadas com sonhos gulosos promessas de banquetes apetitosos as letras se divertem vendo cobras gordas se contorcerem umas nas outras em sono denso ursos brancos e negros urram ferozes com sonhos vorazes de refeições sangrentas sobre a branca neve permanecerão assim cobras e ursos deliciados com promessas de fabulosas caçadas até que a neve e as letras cansadas se derretam nas rochas os ventos vindos dos confins do cosmo na frialdade e escuridão de um planeta localizado nas bordas do universo sopram furiosos fustigam as rochas e não só elas mas todo o gigantesco planeta neve de metano cai sobre a monstruosa cordilheira que se derrama em grande parte da porção setentrional do planeta nos vales rios de metano correm apressados e violentos com corredeiras cachoeiras e cataratas que vão desaguar num oceano sem fim de águas turbulentas água não metano líquido de ondas enormes no mais denso breu os ventos cósmicos se chocam e solapam o planeta negro e gélido provenientes de todas as direções do cosmo a grande cordilheira espia tranqüila do alto a sua própria solidez os mares de metano em sua instabilidade líquida parecem se expandir e depois refluir em movimento contínuo e repetitivo mas com ritmo variado no outro extremo do planeta nuvens negras de metano se acumulam pesadas carregadas relâmpagos riscam luminosos a negra noite seguidos de trovões ensurdecedores em instantes começa a chover grossas gotas formam sulcos no solo seco que rapidamente se juntam formando riachos e rios chove sem parar os rios vão se tornando largos e caudalosos chove meses a fio ou anos ou décadas ou milênios planeta onde o tempo parece ter se esquecido de si mesmo em região meridional o solo todo gretado revela rachaduras profundas onde se escondem lagos de lava incandescente o calor sobe e se dilui na frialdade que só aumenta com os ventos gélidos vindos de várias direções formam-se poderosos redemoinhos vorazes que competem entre si engolindo uns aos outros apesar dos fortes ventos glaciais uma fumaça que se estende a milhares de quilômetros domina e oculta a paisagem fumaça com forte cheiro de enxofre que vem do subsolo incandescente o vento sopra forte e violento pedras incandescentes explodem em contato com o sopro gelado os pedaços pepitas de rubi em fogo brilham na noite alienígena espetáculo pirotécnico nas franjas do universo nada é previsível estranhos fenômenos sucedem como num tubo de ensaio enlouquecido alguns fenômenos ocorrem uma vez então devido a sua fugacidade talvez não possam nem ser caracterizados como fenômenos outros se repetem durante algum tempo outros bem mais tempo até chegar aos que se repetem sempre os fenômenos que se repetem sempre são poucos se comparados ao número incalculável de candidatos a fenômenos este planeta escuro e gelado pertence a um sistema binário gira ao redor de uma estrela anã completa sua trajetória irregular ao redor dela em duas horas e sete minutos e vinte e sete segundos segue sua jornada errática como um ser macambúzio que persegue às escuras algo que não sabe nem concebe
Palavras em Transe - tela 2 (2007)
Acrílica s/ tela
219,0 cm (diâmetro)

1 comentários:

Unknown disse...

O vento do seu texto e seus múltiplos sons carregam o leitor para dentro desse seu vórtice/transe angustiante. Muito bom. A sensação de ser sugada pelo texto é terrivelmente deliciosa. Doris.

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