quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Os “Corredores Suspensos”(2006-2008) da artista espanhola Cristina Iglesias desenham trajetos através de textos escritos em grandes painéis de ferro doce (ferro puro, maleável e resistente à corrosão) trançado que, agrupados, formam labirintos. Esses painéis são vazados e evidenciam um trabalho artesanal impecável e de fino acabamento. Neles, a artista reproduz descrições de lugares fantásticos retiradas da obra de escritores como Huysmans, J. G. Ballard, Arthur C. Clark, H. G. Wells, Raymond Russel, o texto do Livro Natural e Moral das Índias escrito por um jesuíta ou textos escritos por ela mesma. É uma tapeçaria metálica que nos remete à arquitetura oriental, sobretudo a islâmica.
A sensação de leveza e delicadeza que o trabalho de Iglesias sugere nos faz esquecer de que se trata de material pesado. A narrativa se entrelaça com a idéia de percurso. O deslocamento físico que um itinerário nos proporciona corresponde ao desenvolvimento de uma descrição como uma viagem. É a leitura como ideia de movimento construtivo de um i
maginário.
A arquitetura se mescla à literatura, desvelando a sintonia entre essas disciplinas. Os labirintos guardam uma organicidade própria das descrições de paisagens, lugares ou cidades. Com seus “Corredores Suspensos”, Cristina Iglesias revela que não há conflito entre a arquitetura e a literatura: descrever um lugar, ambiente ou cidade é criar uma estrutura que a cada vez que for lida será reconstruída e percorrida pela imaginação do espectador/leitor.
O fenômeno da leitura é reinterpretado nos “Corredores Suspensos” de Cristina Iglesias como algo não apenas intelectual mas, também, corpóreo. Dentro dos corredores, o espectador/leitor vivencia um evento sensorial que tem como fundamento a palavra. Enquanto o espectador flui pelos labirintos, seu corpo (inclusive o intelecto) frui a experiência como um estímulo ao espírito. A leitura como um diálogo diálogo do leitor com o escritor e, consequentemente com a cultura humana, se amplifica ao longo dos "Corredores Suspensos", poéticas passagens que nos arrebatam para ambientes fictícios através da palavra escrita.
Cristina Iglesias serve-se de certos procedimentos da arquitetura para despertar no espectador sensações como as que ele pode experimentar ao passear por um jardim ou qualquer ambiente interno. A luz e a sombra, potencializadas através do recurso às estruturas vazadas, vão ao encontro da função ornamental, tal como a arte islâmica, e não apenas utilitária de portas, janelas, corredores e outros espaços que proporcionam acesso, circulação e comunicação. As sombras que se projetam e se justapõem no piso e nos corpos das pessoas reafirmam o poder sedutor não só dos painéis em si, mas do que podem representar: o poder da l
eitura.
Os labirintos de Cristina Iglesias não são apenas uma representação metafórica da leitura. São a (re)criação, por assim dizer, ritualística, da viagem que representa o ato de ler. O corpo faz o percurso que o intelecto percorre quando lemos. Se, na leitura, os olhos e o intelecto são as janelas abertas para a interpretação dos textos, nos labirintos de Iglesias, o corpo (incluindo os olhos, a artista diz que é possível ler todos os textos que compõem os painéis) interpreta sensorialmente o ato de ler.
O caráter decorativo dos textos embutidos nas estruturas metálicas não relega a literatura a coadjuvante de um périplo onde elementos arquitetônicos se destacam. Muito pelo contrário. Nesses labirintos a palavra se “camufla” numa profusão de formas gráfico-geométricas. As letras são for
madas por linhas horizontais, verticais e diagonais que além de descrições de lugares ou ambientes possibilitam, através dos espaços vazios, belas projeções da luz.
A arquitetura dos textos se concretiza com a presença física da palavra, que forma padrões de forte apelo visual como artefatos construtivos que filtram a luz, criando jogos de claro-escuro que operam como estimulantes ao fluxo da imaginação. Ocultar e revelar são recursos que a melhor arte utiliza para enriquecer o nosso imaginário.
Não apenas os textos escritos nos painéis estão presentes. As grandes viagens, odisseias ou sagas narradas pelos aedos gregos e trovadores medievais, Jorge Luís Borges com seus labirintos e jogos de espelhos e até mesmo as "Cidades Invisíveis" de Italo Calvino podem virtualmente ser evocados e projetados pelo espectador ao passear pelos “Corredores Suspensos”.
Se descrições estão contidas não se deve concluir que o trabalho da artista seja narrativo. As palavras, com suas propriedades construtivas e compositivas, ganham status material, criam esculturas e com elas o complexo labiríntico. A palavra aí é um elemento concreto e, por extensão, escultórico.
O entrelaçamento das ações ver e ler nos reporta à figura do espectador como um flâneur, aquele que como um voyeur em seus passeios descompromissados interpreta a cidade, com seus flagrantes e detalhes,
como um objeto a ser desvendado, apreendendo detalhes que ao transeunte normal passam despercebidos. O flâneur lança, simultaneamente, um olhar atento e desatento, permitindo que o fluxo da observação aguce sua imaginação e o envolva.
Assim as analogias entre arquitetura e literatura, ver e ler, das dimensões corpóreas e imaginárias, do percurso como acontecimento sinestésico e intelectual instigado pela leitura, o leitor como um viajante intelectual e o espectador como um leitor visual, desdobram-se nos corredores de Cristina Iglesias como repercussões da flânerie, fenômeno que nos remete a Baudelaire e Walter Benjamin.
Nas instalações “Corredores Vegetais” (2008) os conceitos de itinerário são reinventados através de fragmentos de plantas, como galhos e folhas, trabalhados com resina de poliéster e pó de bronze. A incorporação da natureza passa por um processo de transformação, que a artista, graduada em química e arquitetura, associa à alquimia. A natureza, testemunha (e vítima) dos percursos humanos, aparece transfigurada como um fóssil que compõe fragmentos de labirintos revestidos de grande beleza plástica. O mesmo padrão decora o "Portão e Entrada para o Claustro dos Jerônimos" (2006-2007), peça de quatro folhas que se move cinco vezes ao dia instalada numa entrada do Museu del Prado. Os ciclos, círculos e diálogos proliferam nesse trabalho de Cristina Iglesias: interação entre os espaços fechados e abertos, museu e cidade, arte de museu e arte pública e, com o uso do bronze, material do qual é feito o portão, tradição e modernidade.
A água é outro elemento natural usado pela artista como componente escultórico. A maquete do misto de instalação e projeto paisagístico “Fonte Profunda” (1997-2006) que está na Leopold de Wael Platz em Antuérpia, na Bélgica, apresenta algo como uma grande piscina rasa com fundo de superfície irregular e textura porosa (feita de cimento modificado e policromado)
cindida por uma grande fenda que a divide ao meio por onde, num processo circular, de tempos em tempos a água escoa e depois volta. O subtexto erótico reforça o aspecto sensorial do trabalho de Iglesias e ao mesmo tempo seus conceitos de fluidez, circulação e circularidade. Grutas, fendas e água: aqui e ali, percebemos na arte de Iglesias sutis referências ao universo feminino.
A maquete de um ambicioso projeto labiríntico no Mar de Cortés, Punta Colorada, Espírito Santo, no México ("Aquário II"), é um exemplo ainda mais contundente dos conceitos de percurso que a artista tem desenvolvido. Um labirinto que deve ser construído no fundo mar localizado numa região propícia à formação de recifes. Com características semelhantes aos "Corredores Suspensos" como paredes vazadas e textos mas, ao contrário dos "Corredores Vegetais" em que Iglesias incorporava formas naturais, nesse projeto é a própria natureza que deve incorporar e se apropriar do trabalho da artista. Se naqueles corredores Iglesias multiplicava galhos e folhas transformados, em "Aquário II" o labirinto será colonizado por corais e povoado pelos seres do mar, assim como acontece com navios e outras embarcações naufragadas, radicalizando ou subvertendo o processo mimético com a apropriação do ambiente natural. Nesse trabalho, valores culturais humanos se fundirão à natureza e estarão a mercê do acaso e seus imprevisíveis caprichos.
Ao se apropriar da luz e da água a artista redimensiona esses elementos obtendo com eles efeitos plásticos que aproximam suas instalações de projetos paisagísticos e arquitetônicos, ainda que sem função utilitária, mas, à semelhança da melhor arquitetura e do melhor pais
agismo, exalam rigor e poesia visual.
A mobilidade pode processar no espectador um fluxo de imagens e palavras, acrescidas à projeção das sombras ou o escoamento e o retorno da água, para levá-lo a lugares irreais onde a concretude dos elementos torna-se etérea ou imaterial.
A instabilidade do olhar, repleta de estruturas flutuantes e indefinidas, constrói uma arquitetura erigida num lugar muito além da razão, projeto instável e impalpável que se vale do nosso corpo para formar um amálgama de conhecimentos e sensações indecifráveis e indescritíveis.
A exposição de Cristina Iglesias se realizou na Pinacoteca do Estado de São Paulo
Praça da Luz, 2 Bom Retiro São Paulo SP
tel.: 3324-1000
25 de outubro de 2008 a 4 de janeiro de 2009

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