0 comentários sábado, 14 de agosto de 2010

Litania dos Últimos Dias


O assassino esquartejava suas vítimas. Cada membro, enterrado numa vala: a das pernas, a dos braços, a dos pés, a das mãos, a das cabeças, as dos troncos. As valas mediam cinquenta centímetros de largura, três metros de comprimento por um metro e meio de profundidade. A distância de uma para outra era de um quilômetro. A disposição espacial delas formava um círculo imperfeito. Por longos anos ele matou sem correr o risco de ser descoberto. Não tinha preferência por perfil de vítimas. Gostava da diversidade. Viajava para cidades distantes e escolhia alguém ao acaso em local isolado e escuro. Depois de matar, geralmente por estrangulamento, acondicionava o corpo em saco plástico dentro do porta-malas do carro. Rumava para seu sítio, localizado num lugar ermo e distante de qualquer coisa. Vestido com um avental de plástico branco e luvas, separava os membros do corpo com uma machadinha afiada. Quando chegava a uma vala enterrava os pedaços do cadáver, acendia uma vela vermelha, rezava em voz baixa nove vezes o Pai Nosso e a Ave Maria e cuspia sete vezes sobre as palmas das mãos lavando-as com a saliva.


Um féretro infinito avança estrada adentro até se perder em brumas cinzentas. Vai embora como chegou: primeiro regurgitado, em seguida engolido pelo ralo guloso do tempo. Aparece e desaparece, num ciclo incessante que se repete em diferentes lugares do planeta.


Policiais, repórteres e populares se acotovelam para ver e examinar os corpos chacinados em mórbida curiosidade que morre em si mesma. A lama, mistura de terra seca com sangue coalhado atrai urubus, abutres, condores e outras aves carniceiras e os porcos que vêm chafurdar nas poças cavadas pelos passos dos transeuntes.


Um arqueólogo com o semblante gretado pela inclemência do deserto equatorial engolfado em paciência incalculável examina um pequeno osso que supõe ser do mais remoto ancestral do homem. A seus pés, uma fenda se abre e dela sai a foto do crânio de um hominídeo desconhecido que arreganha sua boca, repleta de dentes afiados como lâminas, e o devora inteiro a partir da cabeça. A fenda se fecha novamente levando consigo a foto saciada de seu jejum milenar e o pequeno osso.


Um paleontólogo extenuado por anos de pesquisas infrutíferas tropeça ao acaso na ossada de um pequeno animal. Num insight conclui ser do mais primitivo dos vertebrados. Observa assustado que do interior dos ossos emergem vermes que crescem em número e tamanho. Os vermes se multiplicam aos milhares penetrando as entranhas do seu corpo. Ele se debate na vã tentativa de se livrar do ataque repentino. O corpo sucumbe ao assédio dos vermes com sua fome ancestral. Agora só resta seu esqueleto limpo e branco reluzindo ao sol e jazendo tranquilo ao lado da ossada do pequeno vertebrado.


A fúria dos tratores dilacera a terra exumando através dos sulcos os sorrisos fantasmagóricos de crânios pré-humanos, caveiras e ossos de seres obsoletos de repente despertados de seu sono e retirados de sua mortalha eterna. Uma gargalhada irrompe rasgando o véu azul celeste em sentido transversal ecoando universo afora o desespero primordial.


Os sacerdotes realizam as complexas cerimônias que compõem as exéquias do rei morto. Seu corpo embalsamado envolto num manto de fino linho vermelho jaz num esquife ricamente adornado de símbolos herméticos pintados de cores berrantes e forrados com folhas de ouro. Carpideiras choram num clamor que ecoa em todos os recantos da cidade. O povo interrompe seus afazeres para lamentar a morte do soberano. Um alvoroço se espalha e se instala. Um desespero coletivo contamina todos os súditos. Os operários, imersos em faina obsessiva e com uma devoção que se confunde ao transe, concluem a construção da magnífica e labiríntica tumba real. Um vento quente e seco proveniente do deserto sopra sobre a múmia do monarca. O alarido se intensifica. A massa sonora do pranto das carpideiras é engrossada pelo murmúrio inflamado de um povo que acaba de perder seu poderoso deus-rei.


Um atleta exausto do árduo itinerário da maratona adentra o estádio. Ovacionado, ele e percorre a volta olímpica trôpego, munido da pouca força que ainda lhe resta e se esvai a cada doloroso passo. Em vertigem, seu cérebro gira dando voltas que atingem proporções cósmicas. O corpo fragilizado desmorona para horror da platéia que admirada e consternada louva e pranteia a vida e a morte do herói auto-imolado. A multidão ergue o cadáver e implora aos deuses a ressurreição do herói. Mas os deuses, egoístas e insensíveis ao apelo popular, exigem o corpo do esportista. Uma grande bola de fogo desce do céu, envolve o atleta e ascende rumo ao espaço sideral.


Terminado o parto, o médico entrega à mãe exaurida o bebê natimorto. O pavor infla o coração da mulher. Desesperada, ela se põe a devorar o bebê, as lágrimas se misturando ao sangue, o choro se mesclando ao frustrado anseio maternal.


Após bilhões de anos em que brilhou soberana e irradiou sua poderosa autocombustão a seu gigantesco sistema planetário, uma estrela entra em colapso originando uma supernova. Outra explosão depois, se transformará num pulsar ou, quem sabe, num pantagruélico buraco-negro que irá devorar qualquer corpo celeste incauto que tente se aproximar.


Um corpo dormente
jaz numa cama de
pregos pontiagudos
em estado de semidemência
a alma invoca a escada
com degraus irregulares
à medida que o corpo sobe
os degraus se tornam
mais e mais largos
o corpo já não caminha
escala com cordas a
crescente construção
de regular escada se
transforma em
emergente morro
depois em monte
e num gigantesco passo
numa colossal montanha
cansado o corpo
se arrasta
montanha acima
na escalada insana
imerso na demência
no topo vislumbra
um patíbulo
em vão o corpo
se desespera mas
a forca envolve
seu pescoço
resignado o corpo
já não esboça
qualquer esforço
num segundo
desfalece pendurado
como um pêndulo
pra lá e pra cá
num vai-vem
perene


um corpo se revela
através de uma janela
um escopo
no espaço etéreo
um alvo no ar
um corpo
um último esforço
se esvai à medida
que cai
um corpo
em veloz final
se expõe ao
espaço vazio
em vertigem resvala
no vácuo
no oco
no nada
um corpo
em desvario
não desafia
a gravidade
vai ao encontro
dela
um corpo ocupa
espia
expira
no espaço
no vão
um corpo
em queda livre
um corpo
se quebra atinge
esbarra no chão
o solo se borra
se tinge
de vermelha tinta
do mais puro sangue


cave sua própria cova
cave sua própria cova
cave sua própria cova
cave cave cave cave cave cave cave
sua
cova cova cova cova cova cova cova
cave cave cave cave cave cave cave
sua última
alcova alcova alcova alcova alcova alcova alcova
cave cave cave cave cave cave cave
sua última
caverna caverna caverna caverna caverna caverna caverna
cave cave cave cave cave cave cave
sua própria
cisterna cisterna cisterna cisterna cisterna cisterna cisterna
eterna eterna eterna eterna eterna eterna eterna








0 comentários segunda-feira, 7 de junho de 2010

Cenário: despojado, com velas compridas em número suficiente para formar um grande quadrado onde no centro ficará, imóvel, o ator.
Iluminação: com o palco imerso em escuridão, se a luz das velas não for suficiente, uma luz fraca sobre o ator.
Figurino: o ator deve vestir uma roupa de tons crus que dê a ilusão de que o seu corpo é todo deformado.
Cena: enquanto o ator fala, uma mulher vestida de vermelho vai apagando lentamente as velas. É necessário haver sincronia entre o apagar das velas e o texto falado. Quando o ator pronunciar a última palavra, a última vela deve ser apagada.

Mas o que espero? (pausa) O que espero é que oh o contato entre as mãos... o contato entre as mãos de crocodilo. Minhas mãos não mais as mesmas... Essa a meu lado não me entende. (pausa) Mesmo. (pausa) Outro dia... oh meus olhos... meus olhos. Vez em quando uma capa escura sobre meus olhos. Depois estrelas vermelhas, amarelas, azuis, verdes. Não devo pensar em nada. Nem é bom pensar agora. (pausa) Como estava dizendo. Fiz um convite. A imbecil pensou que queria matá-la. (pausa) Estúpida. Agora o que mais quero. Recuperasse os movimentos, primeira coisa. Naquele dia inda não. Só ir ao cinema. Apenas. Como? Não sei. Não posso ir ao cinema. Ou a lugar algum. Impossível. Saio daqui morto. Morto? Oh não oh não. De movimento só o barulho da rua. Sons de carros. Vozes distantes. Algum tempo atrás ainda raras saídas à praça. Sentado, sem quase movimento. Mas fora. Pelo menos. O vento, o sol, o calor... (pausa) o frio até. Pessoas. Pássaros. Ah o canto dos pássaros. Ler por algum tempo. Mas, do nada, a praça demolida. No lugar uma avenida. (pausa) Para onde tudo aquilo? O vento, o sol, o calor, o frio... Pessoas. Pássaros. E seus cantos. Todos enterrados. Carros atropelaram. Dia inteiro ouço o barulho dos motores. Esmagando tudo. Não fossem os carros apenas meu silêncio. (pausa) Carros. Transitando em meus pensamentos. Pensamentos... O que resta deles. Melhor dizer. Esmagando minha mente. Como rolo compressor. Sim. Ela ao lado. Sei que deseja meu fim. Em silêncio. E acha que quero matá-la. Não me disse nada. Mas sei. (pausa) Ela sim quer me matar. Aniquilar meus últimos dias. O que me resta. O pouco. O ínfimo. (longa pausa) Os carros que não param de transitar. Nem no silêncio da noite. Silêncio... Ruídos me rodeiam. Carros vem me atormentar. Ela sai de um carro preto. Toda de preto. O semblante sombrio. Armada. Espingarda, fuzil, metralhadora, sei lá. Tiros disparam. Em cadeia. O som ecoa. O carro some. Restando seu ronco. Ecoando. Os tiros. O ronco do motor. Maldição. Medo eu? Oh não! Sim? Ela acha. Certamente. Ela não diz. Nada. Mas sei. Sinto. Sei. Maldição!


0 comentários domingo, 6 de junho de 2010

Ator B
O rei fora adora a mina. O réu dentro odeia a dor.


Ator B
O deus-rei fora adora o ouro dentro.


Ator A
O deus-réu dentro odeia a mina d'ouro fora.


Ator B
Ora o rei ora o réu mina o ouro doutro eu.


Ator A
Mais eu douro mais sou. Menos eu douro mino outro.


Ator B
A dor dentro odeia o rei fora.


Ator A
Mais eu douro mais eu rei.


Ator B
A dor doura o ódio.


Ator A
Menos douro mais réu. (pausa)


Ator A
Adentro mais eu só.


Ator B
Mais só com meu eu menos outro. (pausa)


Ator B
Longe d'eu longe doutro.


Ator A
Longe d'eu longe deus.


Ator B
Quando só dentro de mim menos eu.


Ator A
Quando longe de mim longe doutro longe d'eu longe deus. Sou nada no nada.


Ator B
Menos um menos dois menos eu menos outro. Nada.


Ator A
Todo muito longe deu em nada.


Ator B
Quando longe do eu. Doeu. Doeu. No nada.


Ator A
Mais longe d'eu menos outro menos deus. Nada.


Ator B
Nada. No nada.


Ator A
No nada. Nada.

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Ator B
Tão só com deus meu eu outro doutro. (pausa)


Ator B
Noutro meu eu deus.


Ator A
Só. (pausa)


Ator A
A hora do sou eu.


Ator B
Só. (pausa)


Ator B
Ora nada só meu.


Ator A
A mina d'ouro nada meu.


Ator B
D'ouro só deus.


Ator A
Ora eu ouro.


Ator B
Ora desdouro.


Ator A
Desdouro doutro meu eu. Deus-ódio.


Ator A
Ora sou são.


Ator B
Ora tão só.


Ator A
Ora soo eu.


Ator B
Ora soo outro.


Ator B
Soo eu em outro.


Ator A
Ora soo só.


Ator B
Ora soo nós.


Ator B
Ora me doo. Logo me dói.


Ator A
Só. (longa pausa)


Ator B
Um outro um eu dentro.


Ator A
Um eu nós outros.


Ator B
Um eu dois nós. (pausa)


Ator A
Me doo eu em dois. (pausa)


Ator A
Me dói eu em dois.


Ator B
Me dói deus. Embora.


Ator A
Deus doeu no meu eu. (pausa)


Ator A
Doeu foradentro do meu eu.


Ator B
Doeu nada.


Ator A
No tudo da hora só eu com meu nada.


Ator B
A mina d'ouro doeu noutro eu?


Ator A
A dor adentrou eu. Minou outro. Afora eu.


Ator A
Meu ouro dói em mim.


AtorB
Fora sou meu rei. Dentro sou meu réu. (média pausa)


Ator B
Adoro a mina d'ouro d'eu.


Ator A
Adorar a mina d'ouro d'eu dói dentro.

0 comentários sábado, 5 de junho de 2010

EU ou Eu


Ator A
Outrora no meu eu tão só outro.


Ator B
Outro no tudo eu doutro.


Ator A
Meu eu não é meu.


Ator B
Só outro eu com meu eu.


Ator B
Eu sou outro eu.


Ator A
Eu só onde o meu outro eu.


Ator A
A sós onde.


Ator B
A sós dentro doutro. (pausa)


Ator B
Adentro doutro eu. (média pausa)


Ator B
Ora fora ora dentro.


Ator A
Adentro a mina douro doutro eu.


Ator B
A mina do


Ator A
(m)eu deus.


Ator A
Ora meu deus ora doutro deus. (pausa)


Ator B
Ora


Ator A
oro.


Ator B
Ora


Ator A
adeus.


Ator B
Ora a teu eu.


Ator A
Ora adeus nós.


Ator A
Ora só ora tão só.

0 comentários sábado, 29 de maio de 2010

banal
bananal
anal
bana(l)
nada


Oh!
0 comentários sexta-feira, 28 de maio de 2010

homem
holocausto
hontem
hoje
horror
oh!