0 comentários sábado, 13 de dezembro de 2008

Lá fora, entrevendo o aparente vazio dentro da galeria, você fica pensando coisas do tipo “parece que não tem nada...”. Quando se entra na galeria a primeira sensação é a de que a exposição está em processo de montagem. Então você pára e espera um pouco. Na discreta e austera paisagem os olhos passeiam, ansiosos, tentando identificar a exposição. Dissimulados no espaço, os objetos parecem se esconder, tímidos como coelhos ou espertos como raposas, como se esperassem uma reação do espectador. A magra visão de um espaço expositivo seminu, não fossem algumas intervenções localizadas e uma emblemática foto de uma mão segurando dois dados lisos, ou cubos, pode desanimar os espectador mais preguiçoso, apressado, ou desatento. Numa parede, à direita de quem entra, há uma reentrância, semelhante a uma porta, que revela uma estrutura de madeira. Abaixo dela, uma escadinha branca de dois degraus. Tudo com uma aparência ligeiramente inacabada. O olho passeia, ávido, procurando organizar as peças desse jogo imaginário e fugidio. Perto da entrada percebemos que no chão há um ralo quadrado com um desenho que parece ser um labirinto circular. Em cima de uma parede, quase na ponta, ao fundo da galeria há uma bola, velha, mas ainda assim, uma bola, signo de um jogo que não nos deixa duvidar, como também os dados, embora sem os furos correspondentes aos números, das intenções da exposição. Acima da mencionada fotografia percebe-se parafusos ou pregos dispersos casualmente na parede. Estarão ali por acaso? Indaga-se até o mais experimentado espectador. Tudo aparenta dispersão. O acaso, inimigo ou amigo virtual de qualquer jogador e componente essencial, indispensável ou inevitável em qualquer jogo paira como sombra invisível em todo o espaço. O nome da exposição de Rubens Mano, “Let’s play”, na Casa Triângulo, deixa pistas: o artista propõe um jogo em que as regras quem deve fazer, ou encontrar, é o espectador. Tarefa difícil em que o jogo de intervenções, supostamente avulsas, parece conspirar para que este talvez não aconteça. Pelo menos, não no sentido convencional do termo jogo. E se encararmos a exposição com essa intenção perderemos, irremediavelmente, a proposta lançada pelo artista. Um jogo é uma intervenção (pre)determinada num espaço ou campo. Mas não esse. É mais fácil pensar que o artista, nesse caso, joga não só no espaço, mas com o próprio espaço, sendo este seu objeto de trabalho. Então, nesta exposição é inútil procurar qualquer objeto de arte, porque este, que parece se ocultar o tempo todo, é o próprio espaço da galeria. É ele que o artista expõe. Joga o espaço em outra dimensão dando nova significação a ele. Os signos reentrância, escada, ralo, labirinto, dados, bola e pregos dispersos revelam as estruturas de um jogo em que as regras parecem coelhos e raposas em fuga. Por outro lado podemos interpretar esses signos como as próprias regras que devem ser interpretadas para se entender o jogo proposto. As inserções no espaço da galeria confrontam o espectador com o seu universo baseado em idéias preconcebidas. Avessas às (pre)concepções, elas escapam a cada tentativa que fazemos de apreendê-las ou interligá-las. As associações são permitidas mas, resistindo às interpretações convencionais, permanecem irredutíveis em sua individualidade silenciosa. Podemos tentar encontrar, no máximo, pistas das regras desse jogo escorregadio. Em vão. Impossível fixá-las com pregos em nossa mente cartesiana, acostumada a ordenar idéias e coisas dispersas na tentativa de dar sentido a tudo. Vagas, escapam por reentrâncias e ralos, rolando como esferas ou cubos no campo caótico do puro acaso. A razão, tenta estabelecer princípios através da formas geométricas, ideais. Mas o acaso espreita se esgueirando como raposa, anulando ou demolindo as supostas estruturas e paredes sólidas das nossas (vãs) certezas. As intervenções tópicas resistem a qualquer leitura convencional, estão no limiar de um dilema, inseridas numa galeria, mas parecem não se subordinar aos estatutos ou institutos da arte. São como silenciosos ruídos que reinterpretam e redimensionam o espaço ou questionam sua própria importância como arte e, na sua ambígua e frágil condição, sugerem que não poderiam estar em outro lugar, mas, por acaso, poderiam ser outra coisa. Dependem fundamentalmente do lugar onde foram concebidas ou colocadas, mas sua permanência é questionável. Sua discreta existência ressalta sua instabilidade assim como o status, valor ou lugar da arte no mundo. Na posição de instalações ou specific-sites, as intervenções escapam às considerações pontuais dos objetos de arte. No limite entre ser ou não ser, estar ou não estar, deixam vislumbrar seu mal-estar como convidados clandestinos a uma exposição que parece não ter existido, um jogo que aconteceu virtualmente, tímidos animais em permanente fuga.
Casa Triângulo
Rua Paes de Araújo, 77 - Itaim Bibi - São Paulo - SP
Tel.: 3156-5621
26.11.08 / 20.12.08
terça - Sábado 11 às 19h




0 comentários

Num contraponto à austeridade do specific-site de Rubens Mano, o Assume Vivid Astro Focus exibe, na parte de cima da Casa Triângulo, formas gráficas em luminosa instalação com predomínio de linhas curvas e retas que evocam a pichação brasileira. A polêmica linguagem de fama internacional que infesta as ruas das grandes cidades brasileiras, principalmente São Paulo, e invadiu até a Bienal, ganha com o AVAF interpretação glamurosa. Os desenhos curviretilíneos e coloridos da elétrica instalação de neon, clássica iluminação que nos transporta à cultura hedonística da vida noturna das grandes cidades do mundo a partir do século 20, com seus anúncios publicitários e fachadas de bares, night clubs, hotéis, motéis e cassinos, se sobrepõem criando um feérico efeito plástico. O neon-psicodelismo do AVAF, pseudônimo do artista brasileiro residente em New York Eli Sudbrack e de coletivo com diversos colaboradores que se caracteriza pela mistura de linguagens e performances, dá continuidade à estética psicodélica sessentista com a interpretação contemporânea que tem marcado seu trabalho. Definida pelo artista como uma “celebração do prazer”, sua estética pop-carnavalizada, que ecoa o Movimento Antropofágico e a Tropicália, absorve uma gama de referências e apropriações como tapetes renascentistas, arte moderna, e produtos da indústria cultural como livros de colorir, séries de TV dos anos 60, 70 e 80, capas de discos, posters de pop-rock, grafite, etc. além de desenhos e fotos de sua autoria. Esse amálgama de referências é digitalizado e resulta, depois, na produção de papéis de parede, estampas de camisetas, adesivos e vídeos em colaboração com outros artistas.



Casa Triângulo

Rua Paes de Araújo, 77 - Itaim Bibi - São Paulo - SP

Tel.: 3167-5621

26.11.08 / 20.12.08

terça - sábado 11 às 20h

www.casatriangulo.com



0 comentários

Em comemoração aos 100 anos da imigração japonesa no Brasil a Galeria Deco exibe uma exposição coletiva com artistas contemporâneos brasileiros, muitos de ascendência japonesa ou naturalizados. Não há uma linha curatorial definida, a intenção é mostrar a variedade de conceitos que norteiam a atual produção artística contemporânea brasileira e como se dá a inserção dos artistas de ascendência e sensibilidade nipônica, e de como outros artistas brasileiros lidam com reflexões afins dentro dessa realidade. De acordo com as (pequenas) dimensões da galeria e com lista eclética de artistas, os trabalhos expostos são em pequeno formato. Em meio a essa prolixidade podemos aproximar os trabalhos de Lia Chaia, Sidney Philocreon, Monica Rubinho e James Kudo que têm em comum abordagens sobre as relações entre civilização e natureza e reflexões sobre a identidade que aparecem nos trabalhos de Nobuhiko Suzuki e Ryota Unno, por exemplo. De quebra, a exposição é uma oportunidade para constatar o papel e a relevância da Galeria Deco no cenário da arte brasileira e paulistana. A proposta da galeria é estabelecer um constante diálogo entre artistas japoneses e brasileiros, de ascendência nipônica ou não. Foi lá, por exemplo, em pequena mas, para mim, histórica retrospectiva, onde conheci o trabalho da importante artista japonesa Yayoi Kusama.


Trabalhos : a partir da esquerda James Kudo, Ryota Unno, Sidney Philocreon (em cima), Mônica Rubinho e Lia Chaia (embaixo)


Galeria Deco

Rua dos Franceses, 153 - Bela Vista - São Paulo - SP

Tel.: 3289-7067

28.11.08 / 30.12.08

segunda - domingo 10 às 20h

0 comentários

Formas sinuosas com aparência leve e elástica. A curva desafia o material pesado, o bronze. A exposição de Tony Cragg na Galeria Thomas Cohn reafirma a posição do artista como um dos mais importantes escultores da atualidade. Os trabalhos expostos evidenciam um escultor em plena maturidade, no completo domínio de sua arte. Podemos dividir a exposição em dois seguimentos: esculturas que repetem o formato estilizado do perfil humano, nos sentidos vertical e horizontal, e formas mais orgânicas e curvilíneas, ambos seguindo procedimentos escultóricos que o artista vem explorando desde fins dos anos 80. A escultura de Tony Cragg não reconhece as fronteiras entre abstração e figurativismo, grande dogma do modernismo, sempre se caracterizou como uma mescla entre esses elementos, os quais completam o que sempre esteve evidente em seu trabalho: formas que desafiam as limitações não só dos próprios materiais, mas, dos (pre)conceitos ligados e fixados a eles. Mesmo quando recorre à tradição, usando o bronze ou o granito, como nessa exposição. É como dar nova chance ao material, recriá-lo e reinterpretá-lo de um ponto de vista muito pessoal e sedutor. Para isso, o artista utiliza prerrogativas que o tornaram conhecido, como o emprego de cores e padrões, o que o aproxima, respectivamente, da pintura e do desenho, elementos que conferem e reiteram o elevado nível artístico de suas esculturas. A série de trabalhos produzidos, a partir dos anos 70 e nos anos 80, com o acúmulo de objetos encontrados no lixo, fragmentos e resíduos cotidianos, assemblages que depois resultam num misto de instalação, desenho, e pintura, deixam claro que a experiência com formas gráficas é muito importante no processo criativo do artista. A partir da década de 80 a linha curva vai se consolidando no seu trabalho, principalmente o de vertente mais abstrata. A curva adquire crescente leveza e fluidez, numa evidenciação de que o caráter gráfico de seu trabalho se transfigurava à medida que sua pesquisa com os mais diferentes tipos de materiais se radicalizava. A profusão de linhas sinuosas que se cruzam e se interpenetram absorvem e retêm o olhar do espectador. A interpenetração de linhas tortuosas nos lança num labirinto circular de onde o olho parece não querer sair. As curvas saltam à memória onde pululam referências que passam pelas linhas sinuosas de Henry Moore, Hans Arp, Antoine Pevsner e Naum Gabo. O virtuosismo com que trabalha os diferentes materiais, de maneira inesperada, surpreende e seduz. As pesquisas formais com o perfil humano, a partir do final da década 80 se intensificam até se consolidarem como uma das características marcantes de sua fase atual. A formalização da silhueta se dá de duas maneiras: esculturas totêmicas nas quais as posições dos perfis se alternam em sentido vertical, de um lado,à direita e, do outro, à esquerda e assim por diante, em que se sente um sopro brancusiano. Ou no sentido horizontal, em que as silhuetas se justapõem em camadas ressaltando uma simultaneidade visual que pode nos remeter às pesquisas formais do Cubismo e, sobretudo, do Futurismo. É possível argumentar que, com essas esculturas, o artista possa estar mais ortodoxo do que nos anos 70 ou 80, época em que, através da incorporação de diferentes materiais e fazendo um vôo livre sobre o humor duchampiano e o comentário figurativo da Pop Art a partir de resíduos da sociedade de consumo, sem, no entanto, renunciar ao geometrismo, era uma inflexão à austeridade puritana do minimalismo. Na sua origem, seu trabalho se baseava na reciclagem de coisas ou fragmentos de objetos encontrados no lixo, os quais, através de engenhosa aglutinação, iam de encontro a formas, às vezes geométricas, outras vezes figurativas e, posteriormente, num agrupamento de objetos díspares, em pesquisa de formas e materiais tão diversos como plástico, gesso, madeira e metais que resultavam em coisas que dialogavam de maneira inusitada e instigante. Variados recipientes que sugerem pratos, garrafas ou vasos e outros objetos cotidianos como mesas e cadeiras, além de motivos que remetem ora ao reino vegetal, ora ao reino animal, num encontro insólito entre o objeto industrial e o natural, a forma estilizada e a orgânica, a natureza e a civilização. No momento, observamos certa ortodoxia no desenvolvimento de suas esculturas quando percebemos referências a escultores modernistas, que trabalharam nos limites entre o abstrato e o figurativo. A ênfase no bronze e no granito, materiais impregnados de história, ainda que não sejam usados de maneira convencional, parece ser sintomática. Mas suas formas continuam impressionando pelo alto nível com que desafia os limites dos materiais impondo e propondo a estes maneiras diversas de abordar a prática escultórica, com a estilização de recursos gráficos que se repetem. Sim, estão longe os tempos em que incorporava elementos da pintura e do desenho à sua escultura com inovadoras resoluções. Embora com resultados não menos surpreendentes, mas sem o frescor de 20 ou 30 anos atrás, agora suas esculturas adquirem, à sua maneira, feições “clássicas”, reiterando características que se cristalizam com a evolução de seu trabalho e com a rigorosa pesquisa escultórica que tem desenvolvido.
Galeria Thomas Cohn
Av Europa, 641 - Jd Europa - São Paulo - SP
Tel.:3083-3355
12.11.08 / 20.12.08
terça - sexta 11 às 19h sábado 11 às 19h

0 comentários

Para quem se frustrou com a Bienal esvaziada, a Paralela 08 pode dar uma boa idéia do que está sendo produzido por vários dos mais relevantes artistas contemporâneos brasileiros. Composta por artistas do cast de algumas das mais famosas galerias de São Paulo e com curadoria de Rodrigo Moura, essa exposição, assim como outras coletivas off-Bienal, cumprem tanto a função, em menor escala, de exibir a produção contemporânea sob diferentes pontos de vista, quanto de ocupar, insolitamente, o vácuo deixado por aquela.
O livro “De Perto e de Longe” com entrevistas de Claude Lévi-Strauss ao jornalista Didier Eribon, é o ponto de partida para uma reflexão, segundo o curador explica no programa da exposição, sobre “a idéia de lugar na produção contemporânea”. A partir desse conceito, a curadoria faz uma abordagerm da arte contemporânea brasileira através de diálogos ou aproximações conceituais, independentemente do suporte e da época em que foram concebidos os trabalhos expostos.
Assim, o misto de escultura, objeto e instalação de Jac Leirner, da década de 90, feito de caixinhas para vômito subtraídas de aviões ou uma série de fotos de Claudia Andujar, da década de 70, de passantes na Rua Direita, tradicional rua de comércio popular do centro de São Paulo, aproximam-se ou dialogam com artistas geralmente associados ao que se convencionou designar “estética da gambiarra” como Marcelo Cidade, Alexandre da Cunha e Rodrigo Matheus (artista que apresenta sedutores quadros feitos a partir daqueles antigos cardápios que eram pendurados nas paredes de bares) que trabalham com os resíduos do meio urbano e subprodutos da cultura de massas, os quais, por sua vez, conversam com artistas que têm trabalhos que fazem referências à cultura popular, como Rochelle Costi, ou mesmo estabelecem estreito diálogo com o universo popular, como Marepe e Efraim Almeida. Os pássaros de madeira deste artista ganham e exploram o espaço, assim como os delicados desenhos de aves de Laura Lima emoldurados e dispostos em movimentos diagonais sugerindo uma revoada ou, ainda, a projeção aérea do trabalho de Leirner que indica a origem do material do qual é feito.
O conceito de lugar ou espaço é pensado pela curadoria tanto em termos de concepção artística, reflexão já inerente ao próprio trabalho e poética do artista, quanto à sua inserção no espaço expositivo que o redimensiona e traz à tona conceitos afins como tempo, trânsito, circuito, arquitetura, viagens, movimento, mutações, fusões, simultaneidade. Três elementos da natureza estão presentes de maneira direta ou indireta nos trabalhos: Terra, Ar e Água. Por estes elementos se desenvolve a comunicação humana com todas as conseqüentes intervenções que vêm sendo efetuadas pela cultura. O specific-site se funde, então, ao objeto criando instigantes associações e aproximações. Logo abaixo e fazendo contraponto ao trabalho de Jac Leirner se espalha pelo chão algo que aparenta pedrinhas, não fosse um olhar mais atento e, considerando o aspecto do espaço expositivo (meio rústico), poderiam ser confundidas com... pedrinhas mesmo. Mas não. São o trabalho de Débora Bolsoni, representações de porcelana das populares pipocas salgadas ou doces.
Logo adiante a foto documental dá o tom, representada por Marcos Chaves, Pedro Motta e Rosângela Rennó. Que se aproximam de um grupo composto por Rosana Palazyan, Leda Catunda, Erika Verzutti, Sara Ramo e Adriana Gallinari. São artistas que de maneiras diferentes refletem sobre a sensibilidade feminina e, ao mesmo tempo, cada uma com sua linguagem, abordam questões como organicidade da forma, chegando a novas interpretações da abstração. Seja pela pintura que ambiciona a tridimensionalidade em Leda Catunda, seja com os desenhos de Adriana Gallinari, que dialogam com a escultura que se funde ao desenho de Erika Verzutti, que pode se identificar com os desenhos de Rosana Palazyan, que utiliza fios de cabelo. Todas guardam certa proximidade com as fotos de Sara Ramo, que têm caráter algo performático, mas dessa ação restam apenas seus indícios ou resquícios corporificados no registro fotográfico. O modus operandi da intervenção artística em espaço íntimo, nesse caso o banheiro, obedece a um método específico que traduz a condição feminina na sensibilidade com que se apropria e organiza os objetos de higiene pessoal.
A idéia de organicidade também está nas fotografias de Marcos Chaves e Pedro Motta: a intervenção humana na natureza ou as maneiras como a cultura a humaniza através de soluções arquitetônicas que incorporam a vegetação ao desenho de moradias e paisagismo urbano dentro de uma tradição popular brasileira. São trabalhos que dão seguimento e potencializam as idéias da curadoria, imbricando em outros questionamentos ao mesmo tempo em que se comunicam com os artistas que se referem a ou se apropriam de elementos da cultura popular. Também eles dialogam ou se aproximam de Carla Zacagnini, a qual, com o vídeo intitulado “e pur si muove” (referência à famosa frase de Galileu Galilei), reinterpreta o gênero paisagem com uma câmera de vídeo fazendo um travelling de 360 graus e reforçando a idéia de circularidade, circulação e vertigem. Ali perto está o interessante vídeo de Milton Marques que exibe um cent de dólar em perene movimento circular num premonitório comentário sobre os descaminhos do capitalismo avançado.
No âmbito da fotografia documental merece especial atenção o trabalho de Rosangela Rennó. Fiel ao seu repertório, a artista se apropria de fotos de outros fotógrafos (muito bem feitas, diga-se) e de seus relatos que traduzem a surpresa e a emoção ao captarem redemoinhos em diferentes partes do Brasil. O vento em movimento circular e vertiginoso que arrebata e espanta o olhar com sua força centrífuga. É um dos mais interessantes trabalhos da exposição e um dos que captam as idéias de movimento, trânsito, e viagens e relações entre cultura e natureza com sutileza e poesia.
Para entender o espírito da exposição não há uma ordem espacial a ser seguida. Numa leitura semiótica (embora algo démodé não resisto à tentação) os conceitos de trânsito e circulação estão representados de maneira clara na exposição, por exemplo, através de ícones como o carrinho de supermercado de duas faces de Marcelo Cidade, do trem na vídeo-instalação de Marcellus L., nos pássaros de Efraim Almeida e Laura Lima, nos barquinhos de papel da instalação e desenho de Sandra Cinto, inspirada na clássica pintura de Théodore Géricault “A Balsa da Medusa”; símbolos como specific-site de Renata Lucas, que abre a exposição, com o carpete da entrada dobrado sugerindo ondas, no trabalho de Jac Leirner em que, através das caixinhas encontradas em aviões, estão implícitas as viagens, o vídeo da moeda de Milton Marques, janelas e portas como nos trabalhos de Nicolás Robbio e Lúcia Koch, no jardim suspenso de Brígida Baltar, de nas bandeiras de Alexandre da Cunha e Antônio Dias e índices como nas pipocas de Débora Bolsoni e na grande tela, misto de pintura e instalação, de Thiago Rocha Pitta que vai sendo manchada de cristais de sal que caem de um calha com o passar do tempo, das especiarias (cravo e pimenta) da instalação de Ernesto Neto, que podem remeter aos descobrimentos a partir dos séculos 15 e 16. Mas não só eles.
As bandeiras dos dois artistas acima mencionadas são uma irônica observação de como se transmutam valores ao sabor dos ventos ideológicos que cada época cultiva, com seus símbolos cambiantes e transitórios. No caso de Alexandre da Cunha, elas, que são feitas de lenços falsos das grifes-ícones da alta costura que podem ser encontrados no comércio popular da rua 25 de Março, numa ironia ao culto histérico às grifes, ainda que sob o signo da pirataria, se contrapõem à bandeira vermelha de Antônio Dias que à época em que foi concebida (década de 70) carregava forte conotação política, comentário ao terror do autoritarismo (o sangue) e resistência à ditadura militar. Cada época carrega as bandeiras que merece? Entre esses trabalhos paira a fatídica moedinha de Milton Marques... Antonio Dias, por sua vez, dialoga com Artur Barrio com suas fotos documentais de cadáveres encontrados na periferia de Belo Horizonte, mortos pelos aparelhos de repressão da ditadura militar ou pelos sinistros esquadrões da morte. Ou de seus happenings-performances com suas trouxas manchadas de sangue, em lugares igualmente periféricos, com claras referências aos acontecimentos acima mencionados. A escultura de André Komatsu parece encarar as fotos de Artur Barrio num diálogo que não se restringe apenas à exposição. Há muitos pontos em comum entre os trabalhos de Barrio e de Komatsu, como o gosto pelo precário, o aleatório e o acaso.
Como (não) classificar os suportes é questão fundamental. Conforme já me referi ao trabalho de Jac Leirner, torna-se, muitas vezes, difícil especificar qual é o suporte determinado de certos trabalhos por causa de seu DNA conceitualmente híbrido, cross-over de idéias que é próprio do imaginário contemporâneo e de muitos artistas. Os mapas afetivos de Ricardo Basbaum fazem comentário pertinente em relação a esse aspecto ao mesmo tempo em que dialogam com os specific-sites presentes na mostra e com o filme de Rivane Neuenschwander. O termo specific-site tem sido usado de diferentes maneiras e interpretações pelos mais diferentes artistas das mais variadas tendências. Podemos designar genericamente specific-site como uma intervenção artística num espaço expositivo.
Na mostra esse gênero aparece sob várias configurações. A intervenção de Nuno Ramos no piso do espaço expositivo, uma reinterpretação do universo do gravador brasileiro Oswaldo Goeldi esculpida no chão com o baixo relevo preenchido com óleo, é um interessante exemplo de hibridização e da dificuldade de classificar certos trabalhos. Revisita a um gênero clássico, a gravura, tem DNA de pintura ou de specific-site. Ah! Quase me esqueci, ainda tem certo aspecto escultórico. Entendeu? Irredutível em sua individualidade artística, o trabalho valoriza e potencializa os suportes a que se refere enquanto escapa escorregadio às classificações. Já o poético trabalho de Nicolás Robbio não deixa dúvidas: trata-se de um specific-site, mas ao mesmo tempo se configura desenho com a projeção em retro-projetor das janelas e portas que existiam no espaço expositivo vislumbradas apenas pela luz solar que entrava pelas suas frestas. Destaca-se o interessante trabalho de Lúcia Koch: quatro grandes janelas vazadas de madeira com rebuscados desenhos ornamentais que ao mesmo tempo dividem, permitem comunicar ou entrever recintos e os trabalhos artísticos que povoam o espaço expositivo. Muito coerente com o seu trabalho, a artista avança em sua pesquisa com materiais “vazados”, como treliças, que exploram conceitos de transparência de diferentes maneiras, no limiar entre o objeto artístico e a divisória industrial.
O cinema potencializa idéias de câmbio, movimento e circulação através dos trabalhos de Cao Guimarães, Rivane Neuenschwander e Raquel Garbelotti, que por sua vez dialogam com as pipocas de Débora Bolsoni (já imaginou cinema sem pipoca?). No trabalho de Cao Guimarães o conceito de lugar é visto de maneira irônica e bem-humorada. Um filme com dois meninos brincando é projetado ao mesmo tempo em que um pintor de paredes pinta a tela. A simultaneidade cria uma estranheza divertida e nos segura na sala. O filme nos faz refletir sobre a representação e suas camadas, da qual o espectador é parte importante, e as relações de interdependência entre aquelas que podem proporcionar, através de um jogo de possibilidades e do realce da transparência (vide o trabalho de Lúcia Koch) da imagem, a irrealidade e a ilusão embutidas em cenas aparentemente banais. O mesmo descompromisso que emana das cenas dos garotos brincando e do homem pintando a tela, e sua conseqüente fusão, reforçam o poder sedutor da imagem que depende, em última análise, da cumplicidade descompromissada do espectador, numa suspensão temporária da realidade, para criar um amálgama de valores dos quais a arte depende para se legitimar. O trabalho de Rivane é um filme que reproduz os vários desenhos ou mutações do mapa mundi desde a Pangéia até adquirir a configuração atual. A artista, que utiliza, com certa frequência, materiais orgânicos e insetos que a “ajudam” a realizar seus trabalhos, desta vez usa carpaccio para fazer os mapas e formigas que devoram a carne, as quais, com a aceleração do filme, conferem aparência algo granulada, dando a ele certo aspecto envelhecido. Rivane engana o nosso olhar, muitas vezes seus trabalhos não aparentam ser o que são. Muito bom. Raquel Garbelotti comparece com foto de paisagem intitulada “Clareira” e instalação em que se apropria de filmes e vídeos criando um arquivo de imagens que aludem a conceitos de territórios contemporâneos e representação dos quais sobressai o filme ”Notre Musique” (2004) que o cineasta francês Jean-Luc Godard fez em Sarajevo.A arquitetura, já mencionada, ganha destaque tanto pelos specific-sites, que amplificam e redimensionam conceitualmente o espaço, quanto pelas fotos de Mauro Restiffe, Lina Kim, Rochelle Costi e Rubens Mano, os quais com diferentes enfoques abordam questionamentos estéticos que podem aproximar este meio da pintura, desenho, performance, design e, claro, de reflexões acerca do estatuto da arquitetura e, em conseqüência, da arte para a compreensão da cultura e da história. Um dos participantes da Bienal, a boa foto de Rubens Mano ganha especial significado pelo caráter premonitório (a foto é de 2002) e comentário visual sobre a polêmica exposição, além de, com a referência, identificar o DNA da Paralela. A emblemática foto fecha a Paralela 08 com foco ou chave algo irônica
Trabalhos (de cima para baixo):
1. Alexandre da Cunha
2. Rodrigo Matheus
3. Jac Leirner
4. André Komatsu
5. Brígida Baltar
6. Artur Barrio
7. Rosângela Rennó
8. Milton Marques
9. Rivane Neuenschwander
10. Ernesto Neto
11. Nuno Ramos
12. Cao Guimarães
13. Lucia Koch
Paralela 08 - "de perto e de longe"
Liceu de Artes e Ofícios
Rua João Teodoro, 565 - Luz - São Paulo - SP
Tel.: 7040-1743
28.10.08 / 07.12.08
terça - sexta 12 às 18h / sábado e domingo 10 às 18h

0 comentários


A 28ª Bienal de São Paulo prática ou virtualmente não existe. Com nome pomposo e o 2º andar completamente vazio chega a ser acintosa a sua insignificante ou (por que não?) nula existência. O 2º andar vazio funciona como um buraco negro que suga ou anula quaisquer objetos ou manifestações artísticas expostas ou que possam ocorrer nas demais dependências da Bienal. Tudo cai no vazio, inclusive o pomposo nome que, nesse contexto, nada significa. Mas nada nessa Bienal significa ou se justifica. Como já disse, o malfadado 2º andar engole tudo. Ok, a predominância da arte conceitual no 3º andar poderia nos iludir que o vazio do 2º é, também ele, manifestação da arte conceitual, ou o seu olímpico triunfo, mas não passa de um delírio conceitual, se considerarmos que a curadoria, dada a grande disponibilidade espacial do 2º andar, ocupa, com discurso vazio, o lugar de dezenas de artistas, usurpando assim o papel e a função reservados a eles. Assistimos, então, a um momento extremo e inédito na arte contemporânea: quando a curadoria, revestida de plenos poderes, resolve, em bizarra e unilateral troca de papéis, ocupar o lugar do artista. Uma exposição para existir tem que ter a) artistas e b) público, a curadoria resolve, com impressionante arbitrariedade, esvaziar a Bienal retirando dos artistas o direito de expor e do público o prazer de fruir. Se ocupa o lugar do artista, seus conceitos como curadoria estão esvaziados. Não é possível, ao menos nessas condições, uma curadoria fazer o duplo papel de curador e único artista ao mesmo tempo. Dispor, não só do 2º andar, mas de todo o espaço da Bienal (como já deixei bem claro, de nada adianta expor obras de alguns artistas no térreo e no 3º andar, o vazio do 2º e sua equivocada concepção anulam, contaminam e inviabilizam toda a Bienal) para nos impingir uma reflexão (sobre a validade do atual modelo da(s) Biena(l)(is)) que poderia ser interessante se estudada em debates, palestras e simpósios paralelos à exposição por artistas, críticos, educadores, autoridades e segmentos da sociedade interessados em arte, é um disparate. Assim, parece não ser possível comentar o pouco de arte que há nessa Bienal que não se abre ao diálogo e nem se impõe como a boa arte. Implacável e taxativamente, apenas impõe. Não porque os artistas que estão ali sejam irrelevantes. Mas porque o equívoco que levou à (in)existência dessa Bienal, infelizmente, não dá espaço para que teçamos comentários críticos sobre os artistas e seus trabalhos. Por outro lado, não há como ignorar que a Fundação Bienal padece de uma crônica falta de verbas. Basta lembrar que a Bienal que seria a de 2001 foi adiada para o ano seguinte. Ou que o catálogo da Bienal de 2006 só ficou pronto meses depois de fechada a exposição. Pode-se cogitar que, embutido em seus argumentos esteja também uma manifestação da curadoria sobre esse estado de coisas... Não acredito, mas se for esse o caso, de boas intenções... Sim, essa Bienal deve ficar para a história, mas não pela sua relevância, que é nenhuma, mas pela triste memória de um vazio que tivemos que engolir sem a menor necessidade, um tédio que, sob qualquer circunstância, seria totalmente dispensável.
Na foto, em primeiro plano: pintura no piso de Dora Longo Bahia

28ªBienal de São Paulo - "Em Vivo Contato"
Av. Pedro Álvares Cabral s/n, portão 3, Parque Ibirapuera - São Paulo - SP
Tel.: 5576-7600
26.10.08 / 06.1208
terça - sábado 10h às 22h




0 comentários quinta-feira, 11 de dezembro de 2008


Justificaro sol nasceu mais cedo e o dia já amanheceu quente é verão os pássaros e aves de todo tipo estão em polvorosa: têm que alimentar seus filhotes vorazes e famintos os mais diversos sons se espalham contagiosos numa algazarra que se estende por quilômetros o rio passa violento em seu leito como se tivesse pressa para chegar a algum lugar como se desconhecesse seu itinerário previsível talvez ele se sinta jovem e renovado talvez ele sempre faça do seu longo e agitado curso um passeio novo a cada centímetro que suas caudalosas e límpidas águas percorrem o sol brilha ao meio-dia e provoca nuances de azul e verde tão infinitas quando o volume das águas turvas do rio grandes rochas se erguem como totens ou edifícios ao longo de muitos trechos do curso tortuoso e errático o volume anormal das águas na época das cheias na primavera devido ao degelo nas montanhas que ficam cobertas da neve do rigoroso inverno e os ventos e a chuva impiedosos em sua fúria esculpem estátuas naturais seres resignados e orgulhosos que exibem com garbo sua beleza lapidada pela violência de uma natureza hostil mas sábia em seus fluxos e refluxos em sua brutalidade e delicadeza aves descansam ao sol sobre esses espigões naturais nos intervalos entre suas caçadas aquáticas quando se lançam certeiras como ogivas naturais em cima dos gordos peixes que o pródigo rio as oferta em porções infinitamente generosas devido às chuvas e enchentes grandes lagoas se formam paralelas às margens do rio com águas tranqüilas e altamente piscosas atraindo grande e variado número de espécies animais dentre invertebrados e vertebrados: insetos em infinito número incontáveis espécies de aves anfíbios répteis e mamíferos herbívoros carnívoros ou onívoros competem em número ou ferocidade para beberem ou se banharem se refrescando da inclemência do sol diversas espécies de patos nadam nas lagoas há o pato-do-papo-preto que é quase todo vermelho exceto na região que lhe dá nome porque se alimenta de crustáceos que comem pequenos peixes avermelhados de uma espécie chamada redemônio-pequeno que se alimenta da alga-vermelha-filetada que é chamada assim devido a suas folhas terem formato de filetes o redemônio-pequeno tem esse nome porque apesar de pequeno tem uma cara que parece uma máscara demoníaca vermelha em pequeno formato há também o redemônio-grande parente daquele mas este não tem só a cara demoníaca é um dos mais terríveis predadores do rio de seus afluentes e das lagoas é onívoro e caça em cardumes como as piranhas mas bem maior possui dentes afiadíssimos e apetite insaciável é temido tanto pelos seres aquáticos quanto pelos animais que freqüentam o rio seus afluentes e as lagoas menos pelo crocodilo-dourado que com seus grandes dentes afiados sua cauda longa e o corpo delgado e comprido pode vencer qualquer candidato a inimigo bandos de borboletas chegam aos poucos se misturam e pousam na superfície sobrevoando as lagoas um dia depois milhões delas de todas as espécies colorem os campos e florestas de infinitos tons e sobretons borboleta-amarela borboleta-amarela-da-mamoneira borboleta-azul borboleta-azul-seda borboleta-branca borboleta-carijó borboleta-coruja borboleta-corujinha borboleta-da-coronilha borboleta-da-couve borboleta-da-restinga borboleta-de-bando borboleta-de-piracema borboleta-do-manacá borboleta-do-milho borboleta-espelho borboleta-estaladeira borboleta-folha borboleta-folha-seca borboleta-gema borboleta-imperador borboleta-jandaia borboleta-listrada borboleta-monarca borboleta-namorada borboleta-oitenta borboleta-oitenta-e-oito borboleta-pequeno-caixão borboleta-rubi borboleta-transparente borboleta-viúva borboleta-zebra borboletinha-do-mato e milhares de outras espécies parece que não há espaço suficiente a ser preenchido por elas parece uma só entidade pousando sobre plantas arbustos árvores relva e até animais de médio e grande porte como um manto multicor toda a paisagem é coberta por elas que fervilham sem parar assim a natureza se assemelha a uma grande tela móvel e flutuante de cores berrantes e metálicas ofuscando o olhar dos animais hipopótamos se agitam nas lagoas incomodados com a vertigem visual a que estão sendo obrigados a suportar até mesmo soltam urros de irritação enquanto se movem com violência espalhando e turvando a água que forma grandes ondas para transtorno e desespero de patos de muitos tipos os quais disputam espaço com cegonhas garças e pássaros que caçam passeiam e nadam aproveitando o calor os crocodilos-dourados se banham ao sol nas margens das lagoas e do rio mas assombrados pelo grande assédio das borboletas fogem para a água deixando para fora apenas seus olhos com o alvoroço dos hipopótamos a plêiade de borboletas se afasta em ondas sucessivas o céu se cobre de um corpo flutuante etéreo e colorido os animais correm assustados e tentam se esconder na floresta é inútil ubíquas elas ocupam cada milímetro não sobrando qualquer mínimo espaço continuam a chegar às milhares e se multiplicam com vertiginosa rapidez não há mais lugar para elas que agora se amontoam umas sobre as outras formando coloridas camadas justapostas os hipopótamos impotentes mergulham na lagoa resignados os crocodilos-dourados acuados permanecem só com os olhos para fora d’água com a falta de lugar na terra a superfície das lagoas começa a se encher de repente estão repletas de milhões de borboletas sobre os patos garças cegonhas e outras aves que desesperadas voam para bem longe sopra um vento suave pouco a pouco torna-se revolto um redemoinho se forma e suga considerável quantidade de borboletas a vegetação se agita árvores e arbustos se curvam novas borboletas surgem e se multiplicam e por falta de espaço se sobrepõem novamente em camadas numa orgia colorida um vento forte traz alguns gafanhotos-grandes que em furiosa sanha carnívora começam a devorar as borboletas o vento forte não pára e com ele vêm novas levas de gafanhotos de todos os tipos gafanhoto-argentino gafanhoto-bandeira gafanhoto-cobra gafanhoto-crioulo gafanhoto-d’água gafanhoto-de-arribação gafanhoto-de-coqueiro gafanhoto-de-jurema gafanhoto-marmeleiro gafanhoto-de-praga gafanhoto-do-campo gafanhoto-gigante gafanhoto-invasor gafanhoto-menor gafanhoto-migratório gafanhoto-peregrino gafanhoto-soldado gafanhoto-sul-americano gafanhoto-verde dentre dezenas ou centenas de outras espécies chegam aos milhares cada vez mais rápido e devoram centenas de milhares de borboletas que continuam a chegar mas agora em menor número o céu e a paisagem vão aos poucos mudando de cor os infinitos tons multicoloridos das borboletas dão lugar aos tons de marrom e cinza dos gafanhotos o ruído perturbador desses insetos assusta ainda mais as aves mamíferos e répteis já acossados pelas inconvenientes borboletas os mais rápidos saem em louca disparada para muito longe e os mais lentos são devorados pela fome insaciável dos gafanhotos que obviamente não se contentam em tragar só borboletas quem não conseguiu fugir pagou com a própria vida do nababesco banquete dos gafanhotos só sobraram os esqueletos no caso dos vertebrados nem um mínimo naco de carne restou quanto às borboletas nem sua sombra o apetite dos gafanhotos parece infinito não satisfeitos depois de terem devorado todas as borboletas mas todas mesmo e outros insetos e vertebrados vulneráveis eles se põem a devorar a vegetação depenam tudo que encontram verde ou não depois que acabam o banquete pantagruélico resolvem descansar um pouco antes de partir para arrasar outras paragens eles não têm um líder que decida tudo é apenas um acordo coletivo tácito o ruído guloso e angustiante da fome infinita dos gafanhotos cessa o silêncio se impõe como um manto negro sobre a terra devastada a paisagem é um triste e infinito deserto com as árvores e arbustos sem sequer uma folha enquanto os gafanhotos descansam um vento sutil e tépido sopra aquecendo a sesta dos gafanhotos em silêncio grandes e verdes louva-deus invadem os sonhos gulosos dos gafanhotos que sucumbem no seu pesado sono ao apetite verde daqueles predadores eles chegam aos poucos não em levas mas individualmente é um banquete insidioso e lento ouve-se o ruido seco das articulações dos gafanhotos se quebrando nas suas bocas e dos corpos crocantes sendo aniquilados pelas garras poderosas dos louva-deus que degustam suas vítimas como se elas estivessem imersas num doce e fatal pesadelo só se ouve o discreto som do estalar dos gordos corpos dos gafanhotos sendo devorados é como o crepitar de uma fogueira lentos e meticulosos eles se deliciam com a calma e os modos que se espera de um gourmet eles se espalham por toda a extensão da grande planície tribanda completamente nua o sol brilha sobre os corpos alongados dos louva-deus expondo nuances de verde sobre as tonalidades marrons dos gafanhotos e marrom cinzentas da terra arrasada o rio percorre seu curso com a violência e veemência habituais revoadas de aves migratórias pousam barulhentas e famintas atraídas pelos milhões de louva-deus que descansam depois de se banquetearem com os gafanhotos as aves migratórias apenas passavam quando avistam do alto a multidão de louva-deus atraídas pela quantidade de comida decidem nidificar e procriar ali mesmo a fartura de louva-deus é tanta que os pais não encontram qualquer dificuldade para alimentar os filhotes negras nuvens se acumulam na atmosfera trovões ensurdecedores e relâmpagos ameaçadores prenunciam as fortes chuvas que não demoram para despencar do céu chove torrencialmente durante dias são como cachoeiras que se precipitam pesadas do firmamento sobre a terra as aves sem a proteção de qualquer folha pois não restou nenhuma sequer tentam proteger suas ninhadas apenas com as asas muitas perdem seus ninhos com os filhotes que caem dos galhos das árvores e arbustos nus e morrem atolados na lama ou afogados nas grandes poças que vão proliferando com a chuva contínua pior desdita têm as aves que nidificam no solo para essas espécies as perdas são imensas os pais quando não morrem afogados têm que se resignar a esperar o próximo ano para procriarem novamente um dia a chuva para como se o céu estivesse exausto de tanto chover o sol volta a brilhar folhas voltam a nascer nos arbustos e árvores antes silhuetas esquálidas desfolhados em meio a uma paisagem desolada as gramíneas voltam a crescer assim como toda a vegetação mesmo com aquela quantidade de chuva parte das aves se salvou e os animais que tinham fugido das pragas das borboletas e dos gafanhotos aparecem para repovoar a região um macaco arborícola salta da árvore ao solo é um indivíduo muito ágil mas seu pulo surpreende a si mesmo sua família pai mãe e irmãos não entendem nem sabem interpretar o que significa aquele salto nunca nenhum indivíduo daquela espécie fizera isso não é parte do seu comportamento são macacos arborícolas que passam a vida toda no topo de árvores altas além disso sua anatomia não está adaptada para tal peripécia e muito menos para se locomover no solo foi um ímpeto inexplicável uma força estranha que o impelia ao solo outras espécies de macaco transitam das árvores para o solo mas não essa adaptada somente às alturas passado o espanto inicial o que se segue é uma barulheira geral um protesto em uníssono dos macacos de cima com o salto imprudente o jovem macaco dominado ainda pelo choque do estranho ímpeto parece não ouvir ou ao menos não se importar com o alarido que vem de cima: paralisado e atônito olha para os lados sobre as quatro patas esboça desajeitado alguns passos ignorando as veementes reclamações vindas do alto parece fora de si com os olhos esgazeados se acalma olha para o chão bate as patas traseiras com decisão no solo algumas vezes como se estivesse se certificando que estava realmente em terra firme patético dá a volta no tronco da árvore quando chega ao ponto onde tinha pulado toma um susto com os guinchos irados que chegam aos seus ouvidos como pedradas sonoras como se estivesse saindo dum estado de transe só então se dá conta da encrenca em que se metera olha para cima e observa o grupo de macacos coléricos está tomado por uma dúbia sensação o prazer de estar pisando pela primeira vez no solo acompanhado do medo de enfrentar a reprovação dos que o esperam lá em cima depois de hesitar alguns minutos sobe a árvore temeroso de um castigo está confuso até mesmo desnorteado havIa experimentado um indescritível sentimento que nenhum dos seus semelhantes experimentara depois disso não se sente mais o mesmo mas agora o aguarda uma censura coletiva escala o tronco da árvore devagar com a cabeça baixa desejando que esse momento se prolongue infinitamente um silêncio incômodo o persegue assim como os olhos espantados dos macacos até sua chegada à copa da árvore quando se aproxima do grupo a gritaria é geral os pais o repreendem com firmeza a reprimenda maior é dada também por eles mas a mando do chefe: dois dias sem comer só água uma aranha espera na sua teia de fios quase invisíveis uma presa com a cautela e a paciência que lhe é peculiar a aranha é transparente o que a torna uma predadora muito bem sucedida os fios da teia são quase transparentes e brilham com a luz do sol a espera por uma vítima pode demorar horas mas de súbito ela se lança ao solo seu corpo transparente aos poucos vai adquirindo um tom branco com focos avermelhados na cabeça e na região das articulações das patas as pinças crescem nas patas dianteiras no seu dorso cresce uma carapaça do mesmo tom branco avermelhado do resto do corpo suas patas que antes dessa metamorfose mediam menos de dez centímetros agora chegam a mais de trinta seu corpo todo se avoluma e fica mais duro à semelhança de um grande caranguejo dois dias depois faminto o jovem macaco volta a se alimentar está ressabiado todos o encaram com desconfiança inclusive seus pais irmãos e outros familiares fica sozinho comendo os doces frutos amarelos que ele mesmo colheu logo de manhã quando se sentia muito fraco autorizado pelo chefe e os pais agora está só assim como nos dois dias em que ficou de castigo tudo indica que as coisas vão continuar na mesma pelo menos por algum tempo mas ele não entende direito o porquê da punição não quebrou nenhum tabu como invadir os territórios de outros grupos de macacos de sua espécie ou de outras isso sim é uma coisa muito grave claro ele entende que descer até o solo é uma temeridade correu um real perigo mas não podia ser castigado e humilhado como quem quebra certos tabus ou será que cometeu erro pior? tabus já são delitos previstos e descer da árvore nunca se cogitou a partir desse ato inaugura-se um novo tabu mas tanto sua família e o chefe têm certeza de que ele jamais voltará a fazê-lo a aranha-caranguejo caminha alguns metros à procura de vítimas apesar de grande ela é quase silenciosa sob essa identidade seu alvo preferencial são roedores e serpentes boa visão não falta a ela ser noturno quando aranha-caranguejo e diurno quando aranha-transparente suas longas patas têm sensores para detectar a aproximação de algum ser pára de repente pois percebe que há algo bem perto em segundos sente que uma força muito poderosa se enrodilha apertando-a e levando-a a um desagradável estado de vertigem que nunca vivenciara seu instinto de sobrevivência de imediato começa a trabalhar e as patas dianteiras com suas pinças grandes que ainda estão livres beliscam em desespero a jibóia a qual apesar das dores não pretende largar a aranha-caranguejo o jovem macaco sente falta de um contato com o resto do grupo que ao que parece o isolou até sua família agora o trata de maneira até certo ponto impessoal e distanciada ele se chateia mas continua colhendo suas frutas e brincando sozinho os macacos jovens com quem antes se divertia também o rejeitam o impulso de descer da árvore para dar um passeio no chão não o deixa é como uma fixação mas devido ao tabu tenta conter seu ímpeto a aranha-caranguejo continua dando beliscões na cobra com suas fortes pinças mas em pouco tempo a cobra consegue se desvencilhar desse incômodo as pinças da aranha-caranguejo são envolvidas por uma das inúmeras voltas do corpo da serpente ao redor de si mesma na natural tentativa de sufocar a aranha-caranguejo por constrição esta tenta um último beliscão doloroso na jibóia mas isso faz com que ela a aperte mais ainda a pobre aranha-caranguejo sucumbe à força violenta da jibóia que em seguida a engole embora com certa dificuldade sentindo-se solitário e abandonado o jovem macaco não resiste à segunda tentação de descer da copa da árvore para dar uma voltinha depois de ter devorado a aranha-caranguejo a jibóia não se sente muito bem fica enrolada num galho qualquer de uma árvore qualquer jiboiando sentindo um mal estar... ela sabe que isso não é normal dorme um tempo e depois acorda o mundo lhe parece opaco e sem graça seu estômago se revira como um liquidificador interno definitivamente não passa bem o jovem macaco sente um peso muito grande em sua cabeça parece que uma rocha caiu sobre suas costas ninguém se comunica com ele nem mesmo o olham e quando o fazem é com devastadora indiferença e desdém a jibóia tenta se deslocar do galho em que está ainda que devagar mas não consegue se movimentar mais do que meros centímetros seu estômago pesa toneladas tem a incômoda sensação de que engoliu uma rocha involuntariamente abre sua enorme boca e permanece com ela aberta durante longos minutos em frenesi seu estômago se revolve ela sente uma dor infinita mas aguarda com surpreendente calma que passe em vão a dor só aumenta experimenta a terrível sensação de alguma coisa devora com fúria o seu interior num movimento de dentro para fora sim é seu pobre coração tem certeza tamanha é sua angústia ai de mim ai! de mim! ela se lamenta e se agita em convulsão no auge de sua dor e aflição quando imagina que seu coração irrompe pela boca se sentindo toda rasgada e dilacerada em seu interior e já quase desfalecida eis que surge à sua frente um ser assustado coberto de sangue e gosma verde-amarelada envolta numa espiral de dor e agonia a grande serpente aterrorizada desmaia despencando pesada galho abaixo e se estatelando no chão completamente abandonado o jovem macaco não resiste ao forte impulso de descer até o chão ele tem perfeita noção do perigo que corre mas a vontade é imperativa olha para os lados e invadido por um misto de satisfação e desgosto o desprezo e indiferença a que está sendo reduzido o maltratam mas agora está livre para descer com muito cuidado e calma deve aproveitar sua liberdade é livre e ninguém precisa dizê-lo é um estado inerente ao seu corpo aos seus gestos mais simples enfim à sua presença no mundo a jibóia agoniza estendida no chão moscas e outros insetos carniceiros já sobrevoam e repousam em seu corpo moribundo volumoso e comprido moscas varejeiras depositam seus ovos em sua pele ferida as dores ela nem as sente mais nos estertores de uma vida feroz e gorda ela só espera ansiosa seu último suspiro a aranha-caranguejo revoltada com o que acaba de lhe acontecer resolve voltar pelo menos por enquanto à sua teia no caminho retorna às características anteriores simples transparente e pequeno aracnídeo de sua teia cujos fios brilham ao sol ela espera com perseverança uma incauta presa enquanto fantasia a sua próxima incursão como aranha-caranguejo sim ela está ainda traumatizada por ser engolida por uma jibóia mas foi esperta o suficiente para sair do corpo daquela serpente gloriosamente rasgando-a inteira por dentro fazendo o uso adequado de suas fortes pinças antes que fosse diluída no mar do ácido suco gástrico daquele poderoso ofídio bastaria ter mais cuidado na próxima ocasião uma mosca pousa num dos fios da teia hora de se alimentar finalmente com os pés no úmido solo dessa vez o jovem macaco pisa mais firme com a decisão que lhe garantirá um papel fundamental na evolução de sua espécie dá não só voltas ao redor da própria árvore como muitas nas imediações mas com tímida cautela não vai tão longe: apesar do seu ímpeto temeroso ele não considera prudente se distanciar ouve sons que nunca tinha ouvido rugidos não tão remotos de animais que ignora mas que causam temor e dos quais pretende manter-se afastado sua visita ao solo é repleta de sustos e sobressaltos até o ruído de gravetos se quebrando a seus pés o assusta seu músculo cardíaco pula inquieto mas isso não é suficiente para que se apavore e volte correndo medroso ao seu lar a aranha-transparente está bem satisfeita muitas presas tinham pousado em sua teia sim, do ponto de vista digamos alimentar não há razão para sua metamorfose mas desde quando as coisas devem ter sempre uma explicação plausível? ela não se conforma em ser uma simples aranha-transparente restrita a uma teia como milhares em toda a floresta sua eficiência como aranha-transparente boa predadora era inegável seu design e o de sua teia eram muito bem sucedidos mas isso não é o bastante para que permaneça sempre uma aranha-transparente enquanto sua teia lhe propicia certo bem-estar através da alimentação e da segurança ela se sente presa circunscrita aos limites circulares dos delicados fios os infinitos espaços da floresta poderiam potencializar o design circular de sua teia sim: a floresta seria sua infinda teia a aranha poderia continuar tecendo-a infinitamente mas preferia estender sua existência à macroteia que é a floresta o assombro de pisar num lugar que não considera seu o agita com incontrolável fúria frenético seu coração palpita estar no chão sozinho lhe causa vertigem que altura nenhuma jamis lhe causou sentir os pés no chão parecia uma busca por alguma coisa desconhecida para além das copas das árvores a segurança da verticalidade e as grandes alturas de um galho a outro que tanto o agradavam no momento parecem menos interessantes do que o estranhamento de sentir a terra firme sob seus pés olha para a gigantesca árvore seu lar pequenino e sozinho conclui que o gigantismo vertical a partir de agora terá que ser compartilhado em suas preferências pela horizontalidade dos vastos terrenos desconhecidos e perigosos da floresta a segurança e a certeza das alturas terá que ser dividida com a insegurança e a incerteza do solo ele se sente diminuto em seu corpo magro e jovem mas está certo de que é isso o que quer mas é uma certeza que vai além da sua consciência está inscrita com toda a força em todas as células do seu frágil corpo é muito fraco para lutar contra essa força avassaladora o gordo cadáver da jibóia jaz estirado no chão para deleite das moscas varejeiras urubus e abutres e condores que brigam por um naco de carne em decomposição o cheiro de carniça se espalha mais aves carniceiras aparecem a aranha salta da tranquilidade e segurança da teia para a vastidão da floresta sabe que pode enfrentar novos perigos mas provou a si mesma que tem suas defesas passa pela metamorfose e em pouco tempo está pronta para passear como aranha-caranguejo de novo o calor vindo do solo sobe como ondas em suas patas dominando todo o seu corpo a cada passo que dá o calor se renova como se antes não o tivesse sentido um ratão-do-banhado cruza seu caminho ele fica paralisado ao deparar com um ser tão estranho a aranha-caranguejo também fica embasbacada esperando alguma reação do ratão-do-banhado que nesse momento não tem a coragem de esboçar nenhum gesto por pequeno que seja há temor mútuo a aranha-caranguejo olha o grande e gordo corpo do ratão-do-banhado agora em pé e ele a observa olhos arregalados em detalhes suas longas patas suas pinças potentes e seu corpo branco-avermelhado longos minutos se esvaem até que a aranha-caranguejo resolve se escafeder aproveitando um momento de distração da aranha num átimo o ratão resolve atacá-la mas antes disso ela se lança ágil sobre ele suas fortes pinças tentam deter os movimentos ágeis do ratão-do-banhado mas ele não está brincando como também a aranha ele tenta se desvencilhar das suas pinças seu corpo dá um rápido giro sobre o corpo da aranha-caranguejo e guinchando se livra das pinças segurando com toda sua força em uma das patas dianteiras da aranha justamente as que possuem pinças ele a torce com a intenção de quebrar suas articulações mas a outra pata ele ainda não tinha conseguido imobilizar mais que depressa ela com sua outra pinça ataca o focinho do ratão-do-banhado que solta um guincho agudo de tanta dor com a pata dolorida a aranha-caranguejo dá um salto meio desajeitado para fora e trata de fugir também dolorido o ratão resolve dar o fora antes que se machuque ressabiada a aranha-caranguejo volta à sua teia e se transforma novamente em aranha-transparente e permanece quieta se recuperando da dor na pata que para sua sorte não quebrou o jovem macaco procura habituar seus pequenos pés às caminhadas ele sabe que não pode ir muito longe primeiro por ser muito perigoso e depois porque seu corpo não está inteiramente adaptado a ficar no chão por muito tempo mesmo que em quatro patas depois de cerca de uma hora suas costas pernas e pés enfim seu corpo inteiro começam a doer então ele tem que subir correndo na sua árvore antes que a dor o aniquile sim ele tinha que subir na árvore da sua família se subisse em outra corria o risco de ser expulso ou até morto por um grupo rival mesmo sendo da mesma espécie que a dele os delicados pezinhos do jovem macaco ficam machucados e quando parado lá em cima num galho distante em silêncio chora de dor e solidão quando caminha não sente de maneira tão aguda o atrito dos seus pés com o solo seu corpo esquenta devido ao movimento e entusiasmo com os novos exercícios e experiências desconfiados de que ele foge para dar suas caminhadas o grupo o isola cada vez mais por outro lado ninguém pode afirmar decisivamente que ele desce da árvore para passear discreto e esperto ele tem conseguido escapar e voltar sem ser notado há um acordo tácito entre os membros do grupo de que por causa de suas supostas transgressões o jovem macaco não merece nem que se lançe um só olhar sobre ele a aranha-caranguejo está moralmente abatida mas sabe que não vale a pena ser dramática afinal ela está bem foi corajosa ao se defender com a bravura que se espera de uma aranha-caranguejo disso ela não tem do que reclamar não podia nem deveria ser tão severa consigo bem talvez essas cobranças fossem em conseqüência das dores que está sentindo mas ela procura se consolar está bem claro não quebrou nenhuma pata apenas alguma dor tem sua teia onde pode se alimentar e descansar é isso mesmo tem que se recuperar se alimentando e descansando cada vez mais desconfiada a comunidade escolhe dois macacos para vigiarem discretamente à distância o jovem macaco que acredita que se está socialmente alijado não é mais obrigado a obedecer às regras do grupo de qualquer maneira pensa que deve ser cauteloso para evitar problemas ou sanções mais pesadas sensível embora marginalizado e aparentemente distante dos olhares do grupo intui que pode estar sendo vigiado ele sempre aproveita a sesta para dar suas escapadas mas até nessa hora é preciso tomar cuidado vislumbra olhares distantes dissimulados sobre si observa suas patas machucadas e as lambe para amenizar suas dores e se curar se alimenta bem e repousa para se recuperar e repor energias um vento gelado sopra impiedoso agitando a delicada embora nem um pouco frágil teia da aranha-transparente a qual permanece imóvel e indiferente aos humores e rigores do inverno nessa época devido à escassez de insetos suas atividades físicas naturalmente diminuem suas energias são poupadas quando entra em hibernação durante alguns dias esse estado é interrompido para eventual reabastecimento e em seguida voltar a hibernar num desses intervalos já devidamente alimentada ela salta de sua teia e se metamorfoseia os pés e mãos do jovem macaco são um pouco diferentes dos demais macacos do grupo não são tão curvados para dentro como os dos outros o design do seu corpo é ligeiramente mais alongado e menos curvado sua cabeça e orelhas são maiores nada que impeça a realização das tarefas cotidianas seus saltos e brincadeiras mas essas características por sutis que fossem sempre foram notadas pela família ao longo do seu crescimento pelos outros membros do grupo essas diferenças no entanto não o impediram de ser aceito pelo grupo grande parte dos animais no inverno hiberna então a aranha-caranguejo se sente mais segura para flanar sem ser incomodada olha para os lados e constata que todos dormem desce da árvore devagar lá embaixo sente com prazer o calor do solo sob seus pés jurou para si que não iria se exceder nas suas andanças o vento sopra morno os galhos das árvores balouçam produzindo um som intenso e luxuriante lança rápido olhar para cima como para se certificar de que estão realmente dormindo experimenta de novo a sensação de pequenez agora com certa satisfação sem se aperceber afasta-se de sua árvore e para sua desolação está longe ou para ser mais exato perdido ensaia alguns passos para se lembrar do caminho inútil fica parado por alguns minutos na tentativa de reconstituir mentalmente o caminho de volta sem o menor sucesso o vento traz estranhos sons algo como escassos risos agudos o jovem macaco gela nunca tinha ouvido nada tão assustador em segundos se avoluma um grupo de ameaçadoras hienas que não lhe parecem estar ali para brincadeiras a aranha caranguejo caminha imersa numa paisagem branca dá voltas algum tempo num ziguezague sinuoso e labiríntico o vento sopra suave e gelado ela gosta da sensação de estar a esmo pela floresta vagar sem rumo definido a teia apesar de proporcionar a ela alimento e segurança circunscreve-a a um microcosmo que ela considera muito limitado ela anseia os grandes espaços as dimensões sem limites da grande floresta diante do riso sarcástico das hienas o jovem macaco não tem dúvidas das suas intenções põe-se a correr desajeitado e logo atrás as vorazes hienas emitindo medonha algazarra desesperado escala com rapidez a primeira árvore sem ignorar que nos galhos aguardam mal-humorados primatas da mesma espécie que a dele mas de outro grupo ao perceberem o invasor os macacos furiosos com a ousadia disparam atrás dele aos gritos a situação se complicaria para o jovem macaco se ele descesse salivando as hienas o esperam lá embaixo não pensou duas vezes: com velocidade estonteante pula de árvore em árvore sem se importar com os territórios que invade atrás de si o alvoroço dos perseguidores só aumenta sentindo a neve macia sob suas patas sem se importar com a baixa temperatura a aranha-caranguejo desfruta pela primeira vez tranqüila a sua liberdade fora da teia sem nada ou ninguém que possa atrapalhá-la ou ameaçá-la mas oh! ai dela! eis que se insinua por entre a vegetação desfolhada alguma coisa viva que a deixa perturbada não pode adivinhar mas parece uma sombra vermelho-alaranjada que se movimentava com certa rapidez continua aumentando o número de macacos e o volume do alarido na medida em que chega em cada árvore seu coração se acelera a aranha-caranguejo entrevê a coisa que tenta se esconder dela um pedaço aqui outro pedaço ali assim de pedaço em pedaço ela conclui que se trata de uma... raposa animais como esse geralmente não se alimentam de aranhas mas é inverno e nessa época há escassez de alimento depois de muito tempo mas ainda muito aflito ele percebe que os macacos tinham desistido de persegui-lo olha com cautela ao redor silêncio exceto o canto das aves e o farfalhar das folhas das árvores pára hora de descansar acomoda-se num galho que o deixa bem escondido exausto adormece depois de algumas horas acorda mais tranqüilo vira-se para cima e vê os galhos com as folhas do verde tenro das altas copas ao fundo o azul intenso do céu de verão macacos menores e inofensivos aves esquilos insetos e outros animais pequenos aproveitam a abundância de alimentos das camadas mais elevadas das árvores ele vaga à toa de galho em galho comendo suculentas frutas parando num galho observa que numa reentrância há a sombra de alguma coisa semi-oculta curioso dirige-se devagar ao local é um susto mútuo quando de chofre ele se coloca à frente de uma jovem e frágil macaquinha da mesma espécie que a dele quando a raposa se põe à sua frente a aranha-caranguejo não se assusta e permanece imóvel aguardando a próxima ação do animal que vai chegando devagar curioso e cuidadoso com seu agudo olfato ele procura sentir o cheiro ainda a certa distância da aranha-caranguejo fareja um odor de sol rio e terra ao mesmo tempo para ambos é um misto de fascínio e espanto fragilizados os jovens primatas se examinam durante alguns minutos aos poucos se aproximam e se acariciam quando o jovem macaco quis ir além das carícias tentando agarrá-la ela o repele com firmeza tratada com violência por seu grupo por descer ao solo como o jovem macaco ela está traumatizada tinha tentado fugir várias vezes mas sem sucesso e na última vez conseguiu escapar à noite enquanto todos dormiam agora perseguida pelo jovem macaco ela se esgueira se lembrando com horror das violências às quais foi submetida a raposa vai chegando cada vez mais perto da aranha-caranguejo à medida que ela se aproxima esta vai ficando cada vez mais nervosa mas não move nenhuma pata sem se deslocar um milímetro a raposa se aproxima mas a aranha-caranguejo não se mexe e sente chegar até ela um cheiro úmido de selva chuva e poeira ela interpreta a aproximação da raposa como um perigo claro mas por outro lado pressente que no caso dela não há sinal de fome ou pré-disposição à agressividade espera ela se aproximar ainda mais para esboçar alguma reação ou seria mais seguro recuar e ir embora? não sabe a expectativa torna-a inerte é como se estivesse presa ao chão finalmente o jovem macaco agarra a macaquinha envolvendo-a com força no início ela resiste mas aos poucos deixa-se dominar depois do sexo comem frutas e satisfeitos experimentam o prazer de estarem livres brincando pendurados nos galhos depois repetem o sexo a raposa se aproxima ainda mais da aranha-caranguejo e examina-a com redobrada curiosidade chega mais perto aproximando o focinho o cheiro de sol rio e terra mistura-se ao cheiro de selva chuva e poeira o casal de macacos copula mais três vezes e depois desce da árvore uma vez no solo sentem-se leves e seguros e inebriados se distanciam da árvore em que estavam uma nuvem de pó se forma sobre a aranha caranguejo e a raposa e os envolve depois que se dissipa ambos já não estão mais lá camuflado numa moita um leopardo espreita o casal o jovem macaco percebe o perigo protege a fêmea pondo-se a frente dela que foge apavorada o leopardo pula com seu ágil e pesado corpo sobre o indefeso macaco devorando-o com seus dentes afiados

Palavras em Transe - tela 10 (2008)
acrílica s/ tela
378,0 cm (diâmetro)

0 comentários segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

no topo da montanha venta muito um ar muito frio gelado mesmo cortante como punhal afiado que atravessa a carne macia é isso um vento frio que cruza o corpo mas o homem não está nu muito ao contrário anda bem agasalhado e quanto mais agasalho veste mais frio passa sozinho sonha acordado com todas as pessoas que conhecera ou pelo menos que podia se lembrar pensa ver uma fogueira ou seria uma pira um grande fogo até mesmo uma miragem num deserto em altitudes geladas confinado a esse lugar tinha todo o tempo do mundo pode ser desesperador mas não vale a pena se desesperar para quê? você se desespera se há alguma migalha de esperança embora sem qualquer certeza também para que ter certeza nesse lugar certezas não cabem em desertos montanhosos lugares rarefeitos onde a temperatura depende do humor do clima certezas são raras se feitas mas não rarefeitas talvez sejam densas pesadas mas ora para que se preocupar com a densidade das certezas e rarefação das incertezas? não há porque pensar nisso mas em alguma coisa deve-se pensar não há porque não pensar em nada não há qualquer motivo para se desesperar não de verdade mas o que digo parece ser uma certeza não nesse lugar não de verdade talvez uma cogitação no mínimo ou no máximo tanto faz medidas e volumes talvez não façam o menor sentido agora como realmente não fazem bem lá venho eu com certezas e dúvidas talvez não se trate de meras certezas e simples dúvidas há um contexto hostil eu diria no mínimo sem dúvida rarefeito de fato então não há por que pôr em dúvida certas evidências eis certezas evidências bem a maior das evidências é que estou absolutamente só e com muito frio as outras podem existir e existem ou talvez mas não resta a menor dúvida de que a solidão e sua frialdade são um fato em minha vida hoje parece que está mais frio... o homem sente o frio gélido chegar aos seus ossos e a fogueira à sua frente sem um pingo de calor gélida miragem talvez sejam minhas lembranças que vêm me assediar como fantasmas roubando meu calor e meu sono são como ondas geladas rajadas de vento que assobiam sibilam incômodas me provocam arrepios e calafrios o pio da coruja-da-montanha anuncia que ela saiu para caçar deixando seus filhotes no ninho aquecidos mas famintos depois de passarem o dia inteiro dormindo quentinhos sob as asas da mãe a coruja que não tem com o que se preocupar na altura em que está o ninho não tem predadores apenas suas colegas corujas-da-montanha que como ela constroem seus discretos ninhos em buracos entre pedras que os protegem da inclemência dos ventos gelados e das nevascas mais ou menos freqüentes tranqüila a coruja-da-montanha desce em vôo silencioso e certeiro para altitudes mais baixas à procura de caça como serpentes e roedores tarefa árdua a coruja-da-montanha passa a noite alternando as temperaturas amenas ou mesmo quentes das florestas com o rigor do frio do topo da montanha seu estômago é pequeno e não comporta tanta caça assim ela é obrigada a fazer várias viagens para alimentar seus vorazes e insaciáveis filhotes regurgitando em suas gargantas ao que parece sem fundo na madrugada o frio se intensifica as lembranças não dão sossego vindo à mente como uma dança malemolente e hipnótica o homem até consegue cochilar um tempo mas acorda chorando nostálgico de um tempo recuado e difuso que já foi bom suporta a fria madrugada atormentado pelas incômodas recordações com o peito apertado ao som do fantasmagórico assobio do vento um som agudo que atravessa metálico cintilante e afiado seu coração me levanto e ando em círculos para esquentar meus pés que estão gelados o vento glacial me traz a certeza de uma vontade que de súbito me domina de continuar ouvindo o pio de satisfação da coruja a cada vez que ela deixa o ninho depois que alimentou os filhotes e parte decidida em busca de mais provisões observar o cotidiano da coruja-da-montanha pode me dar talvez a certeza de que o bater das suas grandes asas o qual apenas ouço de onde estou como a sombra de um som é uma maneira de prestar atenção em algo vivo e não à tentativa frustrante de reviver e tentar consertar ou articular cenas que já nasceram tortas ou mesmo mortas tento percorrer mentalmente o itinerário aéreo da coruja seu olhar matemático e penetrante e seu vôo calculado sua plenitude seu belo corpo suas penas macias seus olhos magníficos não dão margem para dúvidas suas grandes asas alçam o vôo que não será o último mas será sempre definitivo sua existência depende da limpeza ou manutenção das penas principalmente as das asas do silêncio do seu vôo e da abrangência do seu olhar espero o tempo passar isso não quer dizer nada não estou à espera de qualquer coisa muito menos que o tempo passe esperando ou não o tempo passa portanto é inútil esperar talvez isso possa implicar imobilismo ou comodismo e comodista talvez eu não seja vejam bem eu cheguei ao alto de uma montanha quero dizer ao ponto mais alto então eu talvez tenha certeza que não sou imobilista nem comodista digo talvez porque talvez alguém ponha minha opinião em dúvida e se isso acontecer é porque talvez possa não ser verdade o que disse já que há a possibilidade de eu na realidade ser imobilista e comodista pelo menos minha localização física revela que solitário devo ter me deslocado de algum lugar bem mais baixo ou seja talvez na verdade de imobilista e acomodado de fato eu não tenho nada um deslocamento físico pode significar muita coisa embora esteja num lugar onde não haja nenhuma testemunha desse feito lá embaixo ninguém deve se lembrar de mim e talvez não haja qualquer registro sobre mim em livros arquivos ou coisa que o valha não há a menor dúvida de que o fato de eu estar aqui é um deslocamento e tanto e só não pode ser maior porque aqui é o topo não há mais nada acima exceto nuvens talvez estejam me esperando lá embaixo para registrarem a minha façanha ou talvez já tenham me esquecido ou dado como morto e então desistiram de me procurar de qualquer maneira o fato de estar aqui não quer dizer que desisti de viver de qualquer maneira se aparecesse alguém a minha procura devo admitir estaria perdendo seu tempo se permaneço aqui talvez não seja mesmo por desânimo imobilismo ou comodismo mas por opção embora o mau tempo tenha colaborado para minha permanência aqui não sei disso realmente não tenho certeza talvez seja uma maneira de me aliviar de sofrer menos sei lá tentei várias vezes atravessar a grande rachadura da águia um largo intervalo num grande bloco de rocha que domina a maior parte da área superior da montanha só consegui transpor essa grande falha na subida porque estava coberta de gelo e naquele momento não havia risco de avalanches fenômeno muito comum nesse trecho na primeira tentativa usei minhas cordas de alpinismo muito fortes e feitas de material resistente a qualquer fricção em pedras pontiagudas e cortantes mas nessa rocha há imperceptíveis relevos que são como afiadas lâminas o inevitável rompimento da corda me jogou para uma parte muito profunda da falha ferindo-me dolorosamente nas costas e pernas a fenda ou falha era muito escura devido à sua profundidade a muito custo consegui subir sob intensa dor em alguns momentos desmaiei pendurado na corda correndo sério risco de despencar novamente com muito medo de que a avalanche repentinamente me soterrasse de vez e sentindo dores horríveis cheguei enfim na superfície depois de algum tempo curados os ferimentos tentei novamente também com as cordas mas dessa vez nas partes mais estreitas e menos profundas da fenda eram bem raros esses pontos já que as duas características tinham que coincidir foram várias as minhas tentativas numa delas quase morri soterrado por uma violenta avalanche por sorte percebi quando se aproximava fiquei bem rente ao paredão na parte interna da falha respingos nada desprezíveis do deslizamento voaram sobre mim que fiquei literalmente gelado o homem anda em círculos tentando se esquentar fricciona as mãos e depois as leva às faces o vento gelado fustiga seu rosto penetra suas grossas roupas e invade seu corpo como único e arrepiante calafrio o vento gélido assobia uma música fantasmagórica aguda que penetra metálica os tímpanos como faca fria e afiada a dor rasga corpo adentro obrigando-o a se prostrar um frio intenso e uma sensação de desamparo se apossam dele perde os sentidos acorda prostrado em posição bastante desconfortável zonzo com os joelhos e outras articulações doloridas levanta-se com dificuldade ignorando quanto tempo permaneceu inconsciente naquela incômoda posição já é manhã e um sol irônico como se fosse apenas um ornamento sorri para ele sob um denso frio polar caminha trôpego e lentamente para se apoiar numa grande pedra lisa e inclinada apóia-se nela quase deitado ou reclinado e olha para o céu límpido de um azul intenso serra os olhos e apenas vislumbra um impalpável vazio cinza queda-se nessa posição por longo tempo num estado límbico entre o sono e a vigília é surpreendido por flocos de neve que caem sobre seu rosto e dentro de sua boca aberta engasga-se com a neve tosse com exagero curva-se em desespero de repente domina-o o medo de morrer ele que muitas vezes angustiado desejou a própria morte e agora se aflige porque o invade uma sensação de morte a qual com a tosse tenta expulsar a luz do sol incide sobre a neve reiterando sua brancura ofuscante em efeito cegante ainda tossindo muito ajoelha-se na neve e em gesto involuntário leva as mãos aos olhos tapando-os no escuro seu corpo joga-se sobre a espessa camada de neve o contato com a maciez gelada aplaca seu desespero não ainda não chegou a sua hora com uma das faces mergulhada na neve respira aliviado a lebre-da-montanha irrompe sobre a monocromia do branco sua velocidade marrom acinzentada rasga a paisagem alva como uma linha ilusória e efêmera se desenha numa folha de um branco imaculado ele ouve um grito agudo manchando a alvura do silêncio um grito de dor uma linha vermelha sobre o branco dominante sem dúvida de extrema dor a pobre lebre cai e se fere mortalmente numa das várias armadilhas espalhadas na montanha fabricadas pelo próprio homem pronto: seu dia estava ganho uma felicidade resignada o acolhe devagar ele se arrasta em direção à armadilha a lebre jaz morta ao pegá-la o sangue cai em espessas gotas sobre a neve ele examina o animal morto em detalhes toca com delicadeza na sua pelagem patas e orelhas verifica o sexo: feminino mas para seu alívio não parecia estar grávida leva o pequeno corpo ainda quente ao rosto há muito tempo não sentia o calor de um ser ainda que morto um odor forte e selvagem penetra em suas narinas e invade com violência o interior gelado do seu corpo um repentino calor apodera-se dele com sofreguidão roça a pele ensangüentada no rosto grossas lágrimas caem em cascata dos seus olhos se fundindo ao sangue quente com a cara lambuzada chora convulsivamente dentro de suas grossas roupas seu corpo agora está muito quente e banhado de suor o fogo brilha incandescente na paisagem branca sobre uma pirâmide imperfeita o corpinho pelado da lebre repousa atravessado por um tosco espeto de madeira sendo tostado e assado o coração do homem se aquece seus pés frios se esquentam com o fogo ao redor da pirâmide a neve derrete ao redor o cheiro de churrasco se espalha pelo ar frio aquecido o coração do homem bate mais forte o ar quente contamina o ar frio moléculas em revolução espalham-se em estratégias químico-físicas efêmeras um cheiro agradável de carne assada domina um espaço circunscrito como uma ilha de calor e vida diante da caça sobre a pirâmide de pedra seu estômago se movimenta em convulsões algo libidinosas o desejo o queima por dentro seu corpo faminto se lança sobre a lebre assada e ele devora deliciosamente a carne com vontade selvagem o fogo arde e o crepitar da madeira reverbera através da transparente e sólida atmosfera gelada o vidro compacto se rompe em cadeia o ar quente se impõe quebrando as poderosas e vidrentas barreiras de ar frio com prazer o homem se refestela saboreando sôfrego a caça com o ar e o aroma quente do churrasco o gelo retrocede gentilmente em seu próprio espaço o forte odor de carne assada chega ao olfato das corujas-da-montanha às centenas elas despertam do sono diurno e deixam os ninhos com seus filhotes dormindo seu vôo rápido e silencioso risca a atmosfera rarefeita em direção ao apelo do aroma do assado em minutos elas rodeiam o homem a certa distância com seu olhar penetrante cravado no churrasco enquanto come com avidez o homem observa surpreso a insólita platéia seu olhar percorre uma perfeita linha curva em direção aos olhares fixos das corujas ele não tem dúvidas de que a presença delas representa uma ameaça à sua integridade física se não largar sem demora a refeição um vento gelado entra pela sua boca e narinas se chocando com o calor no interior do seu estômago com os movimentos peristálticos acionados pela comida já em processo de digestão seu corpo quente gela numa fração de segundos petrificado arregala os olhos sobre os grandes e fixos olhos das corujas que o cercam ameaçadoras uma onda de calor se sobrepõe ao frio que se apoderou dele segundos antes seu corpo se projeta no alvo espaço seus pés vencem a resistência da neve e marcham em fuga seu coração há pouco letárgico dispara seu corpo agora é uma máquina acelerada que rompe a barreira gelada e opressiva em busca de segurança ele sabe que as corujas querem só a carne assada mas um ímpeto de sobrevivência o impele ao abrigo mais próximo avançando sobre a densa camada de neve que atinge seus joelhos chega a uma gruta sua morada desde que escalou o topo da montanha não muito profunda nem muito alta nas suas paredes ele desenhou corujas lebres e outros pequenos animais da montanha além de rochas paisagens montanhas cobertas de neve e pendurou fotos registros de sua vida antes da subida à montanha sua casa amigos família animais de estimação olha aquelas fotos não há qualquer transparência nelas as imagens antigas se justapõem pálidas em processo de desintegração fotos da montanha se misturam às outras imagens reiterando a opacidade do seu olhar morcegos-da-montanha se alojam no interior da gruta a companhia dos morcegos não o assusta ao contrário do que sentiu com as corujas o temor entre o homem e os morcegos os iguala a sua incômoda presença num mesmo e inevitável espaço os fragiliza a ponto de torná-los quase invisíveis restando um resquício de uma remota crispação um irritante e quase fóssil de uma desconfiança partilhada a contragosto uma opaca resignação residual de convivências convenientes dependurados nas paredes e teto da gruta imagens e morcegos se confundem na noite gelada da montanha só mais essa noite e me mudo dessa gruta os morcegos-da-montanha jamais sairão daqui amanhã ainda que sob tempestade vou procurar outro lugar qualquer reentrância capaz de me proteger da neve a urina e as fezes dos morcegos caem sobre as fotos a acidez e a umidade do guano corroem e desmancham as imagens o cheiro de urina e fezes de morcego se espalha pela gruta e impregna seu interior suas paredes e teto o forte e desagradável cheiro turva o olfato e a paciência do homem que num rasgo de raiva sai da caverna correndo exasperado e desesperado à procura de outro abrigo muito antes do dia irromper flocos de neve caem sobre o seu rosto não com suavidade mas com a brutalidade de uma borrasca a neve que cobre os seus joelhos e a violência da ventania tornam seus movimentos desajeitados e incertos seu corpo parece não obedecer à sua vontade ele se projeta para a frente na tentativa de vencer a resistência da tempestade lembra-se de um lugar que tinha visto há muito tempo muito longe de onde está é para lá que seu corpo em movimento mecânico se dirige não mais o odor mortalmente fétido de urina e fezes de morcegos jura repetindo como uma ladainha o vento frio e cortante parecia parti-lo ao meio ou em mil pedaços uma sinfonia de assobios agudos penetra nos seus tímpanos não está escuro a lua cheia brilha no céu estrelado o vento e a neve fustigam o homem que mal consegue andar ele se arrasta durante horas seu corpo parece despedaçado chega finalmente ao local procurado: duas grandes pedras paralelas que se encontram na parte de cima e formam um “v” de ponta cabeça não chegava a ser uma gruta mas uma boa reentrância exausto protegido da borrasca e bem longe dos morcegos seu corpo se estende sobre uma espécie de cavidade no chão ao fundo da reentrância lá fora a ventania sibila em vários níveis ou camadas de sons agudos uma multidão de morcegos hematófagos e vorazes paira sobre ele tentando atacá-lo a noite inteira seu corpo arde em febre alta a fenda que separa mais da metade da parte de cima da de baixo vai aumentando até ele escapar da corda em que estava pendurado em queda livre à mercê do abismo acorda assustado já é dia a tempestade ainda não se acalmou a coruja voa na manhã cinzenta levando a última refeição ou o café-da-manhã dos filhotes para depois descansar até a noite a tempestade continua furiosa a tarde permanece escura com um tom cinza que se aprofunda até o cair da noite que chega mais cedo o homem passa o dia inteiro sentado olhando a tempestade ouvindo os assovios da ventania seus ouvidos parecem anestesiados pela profusão de sons agudos incessantes a neve castiga a montanha ininterruptamente o vento sopra como uma litania uma sonoridade previsível monocórdia e hipnótica atrás dele jaz um esqueleto humano observa paralisado e indiferente em bom estado não pode estimar há quanto tempo está ali e nem a que sexo pertence jogado no chão o esqueleto de ossos tão brancos quanto a neve começa a se mexer primeiro ele se senta e permanece nessa posição por alguns minutos com uma perna esticada a outra dobrada e um braço apoiado no joelho parece pensar então apóia a outra mão no chão devagar vai se levantando já em pé de braços cruzados ele parece me fitar fica parado como se estivesse olhando para a neve devagar caminha para fora a tempestade já se acalmou e a neve cai em delicados flocos no limiar da entrada ele pára e aprecia a neve caindo corre para fora e esboça uma dança esquisita parece um samba desengonçado evolui com patética desenvoltura ele feixe de ossos brancos sobre a neve e a paisagem branca requebra com a mesma leveza que caem os flocos de neve está esfuziante e acho que sorri para mim estou na entrada da reentrância olhando-o evoluir lá fora ainda dançando ele se aproxima e puxa minha mão como um convite à dança então dizendo não sei dançar não quero eu o empurro contra a parede ao lado ele se desmonta inteiro o frio me invade me levanto vou até a entrada da gruta olhar a paisagem depois da tempestade a tarde está clara mas permanece fria o homem olha para dentro da reentrância e vê ossos humanos amontoados no chão ao pé da parede passa horas montando com infinita paciência e meticulosa atenção todo o esqueleto o sol brilha e o homem sai tranqüilo da sua toca faminto procura as armadilhas que tinha deixado há dias encontra em uma delas uma lebre congelada feliz retorna à toca e assa a caça ao lado do companheiro esqueleto a lenha crepita na fogueira quebrando a vidraça compacta do silêncio o ruído agradável e familiar parece confidenciar a ele palavras quentes as quais seus sentidos interpretam com voluptuosa alegria perto do fogo o calor o invade e o domina sente seu sangue correr rápido pelas suas veias seu corpo todo arde com o calor olha para o esqueleto à sua frente como a um companheiro e pensa “bem talvez seja melhor assim” desvia o olhar ao fogo acompanhando fixamente a dança das labaredas hipnotizado pelas cores ardentes o calor e a intensidade do fogo suas chamas que rompem o reinado da aridez e da frieza suas idéias se embaralham e seu corpo permanece encharcado de suor come com voracidade o coelho depois limpa cuidadosamente seu esqueleto embora com a mesma avidez e ansiedade com que o devorou quando termina o serviço estende o esqueleto da lebre ao lado do humano fica em pé observando-os durante longo tempo analisando cada articulação cada osso cada curva as diferenças e semelhanças entre um e outro a lenha crepita na fogueira com olhos vidrados observa absorto o bailado das labaredas seu corpo molhado treme assaltado por uma onda repentina de calafrios tira com lentidão suas roupas nu senta-se com os joelhos dobrados contra o peito abraçando as pernas as costas ligeiramente curvadas boquiaberto olhos imóveis em frente aos esqueletos parece não pensar em nada o frio não o afeta começa a balbuciar sílabas ou monossílabos incompreensíveis em pouco tempo pronuncia palavras num idioma que nem ele mesmo entende fala desgovernado num acesso fisiológico de incontinência verbal levanta-se e continua pronunciando palavras incompreensíveis encadeando uma crescente e histérica litania com entusiasmo gesticula em descontrole motor andando sem parar ao redor dos esqueletos acelera o andar esboça uns pulos que aos poucos se convertem em dança de início acanhada e desajeitada depois ganha ritmo a dança vai ficando cadenciada e coordenada a estranha fala se transforma primeiro num cantarolar anômalo seguida de uma música dissonante voz desafinada que em pouco tempo numa drástica mudança se reduz a fortes gritos de pavor arrombando a transparente e gélida cortina de vidro do dia ou da noite tanto faz sob torpor olha ao redor de si o vácuo apenas o vácuo como objeto mecânico em movimento desacelerado se deita exausto semblante inexpressivo como uma máscara olhos cerrados ao lado dos dois esqueletos
Palavras em Transe - tela 9 (2008)
Acrílica s/ tela
346,5 cm (diâmetro)