0 comentários segunda-feira, 20 de outubro de 2008

o ouro brilha no sol cáustico do meio-dia outrora um terremoto de grande magnitude trouxe à superfície grande quantidade do metal que com a violência do sismo e intempéries escultoras foi sendo lapidado através de milhares de anos sob o brilho estonteante do sol a terra ostenta todo o seu esplendor a poderosa luminária cósmica derrama seus raios por vastas áreas que todos os dias ilumina a festa contínua que cada ser vivo protagoniza a celebração da vida na terra se desenvolve em ritmo fulgurante e violento sob o olhar auspicioso do sol o ouro se espalha por quilômetros em camadas que se justapõem formando altas montanhas cintilantes o que se ouve é apenas o assobio lancinante do vento seco e quente que sopra nessas paragens desérticas e silenciosas as minas de prata ficavam longe dali mas com certeza existiam em grande quantidade muitos verões se passaram desde que um rio inundou o complexo de cavernas com paredes forradas de pura prata que agora jazem submersas tamanho é o brilho dessas cavernas subaquáticas com suas centenas de galerias que os seres que ali vivem poderiam ficar cegos se ao longo de sua evolução não tivessem desenvolvido mecanismos e características específicas para que pudessem viver nesse ambiente sem sofrerem os efeitos nocivos dos reflexos da luz do sol sob o metal em estado puro peixes de algumas espécies têm um filtro que regula a recepção da luz solar e seus reflexos sobre o metal outros não têm olhos orientam-se e caçam através de sensores desenvolvidos por um lento processo evolutivo a variedade de espécies sem olhos que habitam o complexo de cavernas subaquáticas é grande são peixes de estranhas formas pré-históricas fósseis vivos de um meio em que as condições ambientais permanecem inalteradas há um punhado de milhares de anos as cavernas ocupam boa parte desse rio caudaloso de águas claras e profundas onde as cavernas ocupam extensas partes de vários trechos abutres e urubus sobrevoam as montanhas douradas planam belos e leves sob o sol brincam no céu azul condores com asas de grande envergadura sobrevoam e pousam nos picos dourados vaidosos se espelham nas partes que o tempo lapidou com capricho de ourives e aproveitam as colunas de ar quente há muitas gerações as aves de rapina de grande porte chegaram a esse complexo montanhoso atraídas pelo brilho do ouro convivendo desde então em relativa harmonia no início um pequeno grupo de águias-reais ficava por ali planando e flanando em estado quase hipnótico ao redor dos picos cintilantes durante certo tempo até a fome apertar quando então se retiravam para outros lugares em busca de alimento nos dias e meses seguintes as montanhas douradas tornam-se não só lugar de morada definitiva mas território de procriação e nidificação centenas ou quem sabe milhares de aves de rapina encantadas com o brilho das montanhas de ouro foram nos anos seguintes pousando e se aninhando nos picos e suas reentrâncias o movimento passa a ser incessante isoladas e altas as aves consideram as montanhas douradas lugares ideais onde seus filhotes podem com segurança desfrutar a infância e aprender a voar sem maiores sobressaltos as montanhas de ouro tornaram-se uma espécie de santuário-berçário mas o que no início se revelou e nos decênios seguintes se consolidou como um refúgio seguro tem sido nos últimos tempos alvo de estranhos ataques a ninhos com filhotes sendo devorados o santuário-berçário das aves de rapina vem sendo sistematicamente profanado para horror e revolta das famílias uma parede de prata reflete uma luz ainda mais intensa no já claro rio e suas cavernas revestidas do puro metal na também relativa harmonia surge do nada um estranho ser transparente de uma espécie nunca antes vista nessas águas a qual se alimenta de prata e se reproduz assexuadamente nos dias semanas e meses que se seguem torna-se rotina nas montanhas de ouro pais enfurecidos vociferando e clamando vingança com a profanação de seus ninhos e morte de seus filhotes casais atacam por vingança outros ninhos matando e devorando outros filhotes para desespero dos pais o ódio e a cizânia crescem à medida que os ataques vão aumentando famílias traumatizadas reduzidas a casais com a morte de não só um mas dois ou até mais filhotes já saíram das montanhas douradas para outros destinos nas montanhas de ouro não há alimento as aves têm que se deslocar para caçar bem longe dali aves oportunistas e preguiçosas aproveitam a ausência dos pais e fazem sua sangrenta refeição ali mesmo o ser transparente movimenta-se tranqüilo pelas águas calmas e claras do rio seus movimentos graciosos e suaves lembram as arraias mas parece um lençol estendido quando precisa se alimentar seu corpo bidimensional se estende sobre a superfície da prata e retira através de microscópicas ventosas a quantidade necessária do mineral para um dia depois que faz sua refeição diária sempre à noite ele em sua transparência torna-se brilhante mas não maciçamente partes isoladas cintilam de vez em quando num discreto espetáculo com a onda de violência o trauma contamina as aves que furiosas vociferam todas as pragas aos assassinos águias reais águias pescadoras águias solitárias águias gritadeiras águias cobreiras águias das estepes águias-da-cabeça-branca águias cinzentas águias africanas águias imperiais ibéricas águias imperiais orientais num coro funéreo e furioso lamentam horas a fio a tragédia que só cresce o ser alienígena desliza pelas águas tranqüilas e transparentes do rio passa quase despercebido não fosse uma estranha sensação que os animais sentem ao passarem perto dessa criatura os urubus são acusados pelas mortes e brigam feio até os condores andinos são acusados é uma acusação geral a desconfiança flutua densa por entre os picos cintilantes uma atmosfera esquizofrênica e policialesca paira sobre as mentes incrédulas e rancorosas das aves as mães protegem seus ninhos o tempo todo os pais vão buscar comida muito longe uma longa jornada uma longa espera mas as mães mesmo elas protegendo seus ovos ou seus filhotes não estão livres de serem atacadas ou até mesmo mortas houve tentativas de se fazer reuniões mas ninguém compareceu todo mundo está com medo de todo mundo somado à desconfiança o sentimento que parece dominar e mover a todos é a vingança palavra aliás a mais pronunciada nesses dias sangrentos até mesmo as mães outrora amorosas e imbuídas das sacras funções da maternidade estão cheias de ódio no coração o sentimento de vingança as alimenta elas que só o amor e a dedicação ao ninho e à prole as moviam agora passam o tempo arquitetando em suas mentes traumatizadas e rancorosas ataques e atrocidades iguais ou piores que os que experimentaram apesar dos pesares permanecem altivas seus olhares máscaras impessoais que camuflam o desejo de impiedosas ações seus ninhos tristes e vazios é o início da noite a hora mais perigosa para quem planeja se vingar é o começo talvez de uma fase mais tranqüila depois de dias semanas ou meses de ódio e amargura? talvez se sintam aliviadas talvez individualmente talvez... mas alívio não é o que todos sentem ao contrário a atmosfera na sociedade das montanhas de ouro está cada dia mais pesada imersa nas escuras e densas nuvens do rancor e do horror mergulhados na desgraça da incompreensão os massacres têm seu ápice no começo da noite mas prosseguem com intervalos noite e madrugada adentro gritos irados e lamentos pontuam aqui e ali a noite e a madrugada lamentos lancinantes e fantasmagóricos se multiplicam e ecoam como um coro fúnebre um mantra mórbido irrompe o dia que assiste desolado o resultado da carnificina o clamor domina a manhã e a tarde mas sabemos que nos recônditos e na noite de cada indivíduo ou casal atacado vai se processando uma química cruel que culmina com a vingança no decorrer do dia a dor vai se transformando em ódio vai se incubando até se apoderar do corpo por completo um cheiro de carne morta paira no ar que em pouco tempo se transforma no cheiro podre de carniça carnes em estado de putrefação se acumulam penduradas nas escarpas pontiagudas das montanhas douradas o estranho ser bidimensional flana despreocupado pelas águas límpidas e tranqüilas do rio mas um pequeno peixe detectou sua presença o turbogrifo é um peixe minúsculo capaz de enxergar e acima de tudo detectar a presença de formas de vida transparentes primeiro o ser alienígena sentiu algo como um beliscão uma mordiscada dolorosa apesar de pequeno o turbogrifo é voraz como as piranhas e como elas vive em cardumes depois da primeira mordida vieram outras acossado e aflito esse ser alienígena descobriu que tem que se cuidar por sorte estava perto do seu esconderijo se safou sem ser percebido ultimamente ele tem andado combalido e até mesmo machucado aqueles peixinhos são realmente ferozes localizam sua presença de longe a forma de vida estranha está receosa de sair pelo rio como sempre fazia antes de ser descoberta não é que esses furiosos e famintos peixinhos se considerem guardiões do rio ou das grutas de prata o negócio é que eles perceberam que aquela estranha forma bidimensional transparente pode ser uma boa refeição ciente a estranha forma de vida tem se revestido de muitas preocupações e precauções assim ela que se pretendia poderosa e inatingível experimenta pela primeira vez um sentimento que nunca nem sequer imaginara: o medo sentimentos não podem ser imaginados se você nunca os sentiu antes de qualquer maneira era assim que a estranha criatura se sentia: estranha em sua nova condição dominada por uma sensação que jamais experimentara desconfortável num mundo que pensava dominar mas que se revela incompreensivelmente hostil é como se de repente ela tenha se transformado em outro ser mais frágil em sua nova vida não é fácil decodificar ou interpretar um sentimento tão complexo como o medo para uma criatura que se achava inatacável ela realmente tinha que aprender a lidar com esse fato estranho e novo isto é se os aguerridos peixinhos a deixassem determinados que estavam em fazer daquele esquisito lençol transparente que se alimenta de prata um delicioso banquete a notícia se espalhou com velocidade incrível rio afora ou adentro como queiram mas a estranha criatura isso era imperativo tinha que se alimentar as aves de rapina as águias falcões gaviões as corujas as aves carniceiras abutres condores e urubus todos desconfiavam de todos muitas aves estão partindo mas a maioria acha que as chacinas não são motivo suficiente para isso e esperam que as coisas melhorem que todos se cansem da violência iludidas e acomodadas com um cotidiano violento elas tentam viver normalmente os massacres continuam por alguns dias mas depois vão parando um ou outro caso em uma ou outra noite possuído por uma bizarra sensação que o invadia e se apoderava dele como um parasita o ser alienígena não saiu para se alimentar ou passear durante uma semana ficou entocado em seu esconderijo com medo dos seus novos inimigos e o que é pior com medo do próprio medo durante essa semana teve pesadelos escabrosos e calafrios horripilantes que jamais tinha cogitado para si mas depois da fase aguda inicial a crise foi se abrandando e a criatura foi aprendendo a lidar com o sentimento para ela desconhecido ao final desse intervalo ela já estava recuperada e faminta depois do desgaste emocional e pronta para pelo menos se alimentar ela que gulosa não passava um dia sequer sem comer cautelosa ela desliza suave pelas águas calmas e para ela ligeiramente mais frias estava apreensiva com a impressão de estar sendo seguida não fez rodeios foi direto ao lugar onde sempre se alimentava seu coração batia forte rápida ela voa para cima da prata aliviada permanece imóvel absorvendo o metal absorta alheia a tudo e completamente vulnerável parecia que estava em outro mundo para ela era isso mas não percebeu que estava acordando com violência de um sonho ou entrando num pesadelo à sua frente uma multidão incalculável dos vorazes peixinhos voa em cima dela assustada a criatura escapa veloz acossada com as dolorosas mordidas atrás dela vai se multiplicando o número de minúsculos indivíduos que a perseguem peixes bem maiores e também carnívoros como barracudas e até tubarões atraídos pelo enorme cardume se lançam como mortais ogivas sobre a massa homogênea e compacta de turbogrifos também o ataque dessas exóticas espécies de tubarões e barracudas brancas foi quase um milagre: mais uma vez a criatura conseguiu escapar atordoados com o repentino ataque daqueles terríveis predadores os peixinhos trataram de fugir para salvar a própria pele embora as baixas tenham sido muitas barracudas e tubarões se banquetearam à grande a maior parte do cardume foi devorada mas a criatura sabe que não pode abusar da própria sorte seus inimigos se reproduzem rápido durante três semanas não saía para outra coisa senão para se alimentar tinha saudades dos seus passeios mas era necessário se adaptar sua vida agora estava em constante risco os saques aos ninhos deram uma parada de mais ou menos um mês mas ao fim desse período voltaram com maior violência e crueldade as aves estavam apavoradas revoltadas e rancorosas boa parte não estava nidificando e as que estavam partiram para bem longe a violência se arrastava há tanto tempo que quase ninguém lembrava as causas corpos dilacerados desfigurados e mutilados apodrecem sob o brilho ofuscante do sol o calor decompõe a carne com rapidez a fedentina se alastra as aves carniceiras se refestelam banqueteando-se com o espólio sinistro do conflito mórbido há quem especule que são elas as responsáveis por essa tragédia mas todos sabem que esse comportamento não faz parte da índole de urubus condores e abutres estas aves geralmente não atacam animais vivos elas se defendem argumentando que quem espalhou tal infâmia é que está promovendo os massacres e que elas têm feito um grande trabalho limpando e livrando as montanhas de ouro da contaminação e do fedor além disso muitos casais de abutres urubus e condores também têm sido vítimas dos saques e massacres a criatura já voltou a uma vida normal ou melhor até onde ela poderia ir e o que e como fazer não saía a maior parte do tempo ficava lá na sua toca criando coragem para a hora de sair as aves carniceiras estavam muito ofendidas e injuriadas com o que falaram delas a comunidade carniceira estava tão indignada que foi marcada uma reunião para decidir o que deveriam fazer se ficar ou partir mas para surpresa e espanto dos organizadores e das lideranças não houve quórum os poucos que foram comentaram que apesar de a comunidade estar revoltada com as injúrias e calúnias que inventaram isso não era motivo suficiente para partir seria um desperdício deixar para trás tanta comida não seria racional e depois é sua função natural limpar o mundo elas se declararam apolíticas e imparciais algumas espécies de águias não suportam as aves carniceiras acham-nas hipócritas desde que abutres urubus e condores chegaram algumas começaram a hostilizá-los mas nem todas as águias pensam assim as águias-pescadoras por exemplo acham essa animosidade uma besteira bem elas nunca se aproximaram das aves carniceiras nunca as viram de perto dizem que fedem delas só querem distância assim já está bom: distantes não há motivo para hostilidades pensam mesmo entre as águias-pescadoras há divergências assim havia as que acham o contrário que urubus condores e abutres deviam sair dali o lugar mais apropriado para eles seria um lixão e não as montanhas de ouro aves que só se alimentam de carniça e adoram um lixão não sabem nem desfrutar e apreciar um lugar tão bonito há as águias que consideram isso puro preconceito: tudo bem são aves que têm gostos diferentes mas isso não faz delas seres piores e têm as águias indiferentes que dizem sim as carniceiras são aves bizarras mas ok deixa elas se é disso que elas gostam etc. cada um desses pontos de vista não é exclusivo desta ou daquela espécie de águia claro há opiniões que são partilhadas por uma mesma espécie mas isso não é regra e há falcões gaviões e corujas que têm opiniões semelhantes com detalhes e nuances diferentes as aves carniceiras estavam revoltadas com o que consideravam uma postura arrogante das águias mas sair das montanhas de ouro não pretendiam mesmo a situação sem dúvida era trágica mas seria pior sem elas a criatura passava todo o tempo pensando em como se livrar dos pequenos vorazes pareceu-lhe contudo que os tubarões e as barracudas não a identificaram então pensava a criatura se ficasse sempre na companhia deles estaria salva uma conclusão muito audaciosa mas arriscada isso deveria ser muito bem planejado era necessário se concentrar estava muito nervosa tubarões são peixes perigosos aquela boca lá embaixo com aqueles dentes pontiagudos medo era na verdade uma mistura de excitação e temor para chegar àqueles peixes de grande porte ela teria que vencer esse primeiro obstáculo os tubarões e as barracudas podem não tê-la identificado naquela hora ocupados que estavam na caça aos peixinhos mas ela sozinha ao lado desses predadores imbatíveis? sensíveis à presença de potenciais vítimas eles não a localizariam? se arrepiava ao pensar nisso mas tinha que arriscar ficou três dias no esconderijo tentando superar esse primeiro obstáculo mas ao fim desse tempo ela não tinha perdido o medo do medo mesmo assim não saía de sua cabeça devia arriscar pensava que o medo ia desaparecer mas parecia diferente era um medo que a impelia a ir em frente um sentimento muito estranho e desconfortável que parecia atirá-la no vazio mas onde estavam os tubarões ou mesmo as barracudas? ela sentia ou ouvia o mundo inteiro zunir era como se estivesse cega não estava com fome apesar de não comer há dias tinha dificuldade de pensar devia agir mas com calma os peixinhos... os malditos peixinhos ódio deles estariam à espreita? onde? perto daqui? apesar de tudo e talvez por causa de tudo ela estava excitada um furacão de emoções a invadia e a dominava ela se sentia turva então perdeu os sentidos desmaiou quando voltou a si estava na companhia de duas criaturas à imagem dela ou pelo menos foi o que pensou desejo recôndito há dias não se espelhava então agora as duas criaturas eram como que duplo reflexo dela mesma só que independentes e como se movimentavam! estava surpresa e feliz e assustada e toda a gama de sensações que vêm do sentimento da maternidade agora tinha com quem dividir suas aflições nasceram de um desejo oculto no escuro de sua alma de uma ansiedade absurda como já disse essas formas de vida têm reprodução assexuada mas que desgraça! nasceram em mau momento no meio de tantos sentimentos dilacerantes a solidão e o desejo de companhia o medo e a ousadia ou talvez a soma de todos esses sentimentos aquele turbilhão de sensações contraditórias e não-contraditórias continuava a atormentá-la ou pior se potencializara com o nascimento daqueles novos seres saltitantes e risonhos em tudo semelhantes à criatura ignorantes do que se passava o que poderiam fazer para ajudá-la? pobres desgraçados! os falcões corujas e gaviões se unem para enxotar as águias das montanhas de ouro os urubus condores e abutres foram chamados mas apolíticos declarados não se interessaram estavam ocupados demais em devorar os cadáveres mas por que essa animosidade repentina contra as águias? segundo falcões corujas e gaviões as águias foram surpreendidas saqueando ninhos de alguns casais daquelas três famílias de aves de rapina as águias alegam que não podem pagar pelo crime de alguns membros de sua enorme família apenas os culpados deviam ser mandados embora assim como vários falcões gaviões e corujas também tinham que ser expulsos porque certamente saquearam e mataram então ficou combinado que os criminosos seriam julgados e se culpados expulsos o que sempre acontecia nos julgamentos os criminosos apontam outros criminosos que apontam outros criminosos que apontam outros criminosos... em pouco tempo mais da metade das aves de rapina de todas as famílias e suas espécies é expulsa mas as expulsões não param por aí a criatura esperou ansiosamente a noite chegar para sair com as duas jovens criaturas depois de passar um dia inteiro suportando suas reclamações de fome explicou a elas seu medo diante do perigo iminente mas claro nada entenderam ela criou coragem e saíram os peixinhos as esperavam mal ultrapassaram a saída da toca e as duas criaturas foram tragadas em segundos a criatura não podia pensar nisso agora tinha que se salvar da sanha faminta dos turbogrifos aos milhares ou talvez milhões se arremessaram em densa massa sobre ela que sumiu abafada pelo guloso turbilhão durante dias os julgamentos e expurgos continuam as montanhas se esvaziam aos bocados até as aves carniceiras que não têm mais o que comer vão embora no fim sobram apenas os membros da comissão que entram em calorosa discussão com mútuas acusações que se arrastam por dias o cansaço os leva a capitularem exaustos não encontram outra saída senão se auto-expurgarem só então as últimas aves de rapina partem deixando finalmente a sós e ao sol as montanhas de ouro
Palavras em Transe - tela 5 (2007)
Acrílica s/ tela
314,0 cm (diâmetro)

1 comentários quinta-feira, 2 de outubro de 2008

o vento sopra assobia sibila e agita com violência as árvores os galhos se retorcem num balanço selvagem como um polvo vegetal de pernas pro ar relâmpagos rasgam o céu raios caem perto dali o fogo queima e se esparrama pela relva seca janelas e portas abertas se agitam abrem e fecham com enorme barulho o vento invade veemente a casa folhas soltas voam em coreografia caótica folhas brancas e amareladas todas as nuances de amarelo folhas impressas de variadas espessuras formatos e dimensões diversas dançam suspensas em vôo alto e aleatório letras se soltam das páginas e saltam para ganhar os ares letras de infinitos tons de laranja amarelo vermelho azul em dança desengonçada e violenta as árvores nuas desfolhadas esqueléticas esquálidas esquemas gráficos no turbilhão que domina e empurra o universo um espelho esférico aparece e desaparece o turbilhão tem como centro a casa as folhas de papel em movimento frenético saem pelas frestas da casa voam alto folhas de muitos tons brancos as letras saem do papel voam e voam embaralhadas passam pelas janelas portas e frestas dominam os ares leves sobrevoam as folhas das árvores caídas no chão as letras flutuam leves como penas no alto e se misturam às nuvens e o espaço espalham-se pelo mundo e pelo universo caldo estelar de letras minúsculos fragmentos delas partículas pairam no éter etéreas se juntam em blocos buscando formar blocos de palavras grandes aglomerados flocos de letras brancas caem com leveza no solo o vento sopra suave letras brancas de tamanhos e formas diferentes se espalham delicadamente repousam sobre qualquer superfície derretem-se e transformam-se em líquido alterando as cores e formas dos objetos sobre os quais repousam as coisas vão crescendo em desordem os lados ou partes dos objetos crescem em desequilíbrio as simétricas formas antes harmônicas equilibradas vão se tornando amorfas deformadas os objetos não param de crescer num tresloucado movimento assimétrico e caótico folhas de papel voam por entre as árvores da grande floresta algumas vão se fundindo às folhas verdes das árvores e outras e mais outras e em pouco tempo todas as folhas verdes transformam-se em folhas de papel branco textos impressos em preto vão preenchendo as folhas como uma máquina escritora invisível primeiro devagar depois mais rápido e tão rápido mas tão rápido que os olhos não conseguiriam distinguir uma coisa da outra então as demais coisas da terra começam também a se transformar em outras e então rápida e continuamente uma coisa é todas as outras e assim ao infinito cada coisa é todas as coisas ao mesmo tempo a permanência das coisas no mundo as torna instáveis e mutáveis tal como o tempo elas são o próprio tempo os olhos já não conseguem enxergar as vertiginosas transformações contaminados e convencidos que estão da permanência das coisas vítima da mutação simultânea o olhar não distingue as imperceptíveis e vertiginosas transformações como a água e o ar que nos dominam nos atravessam e nos envolvem as alvas folhas com negros caracteres se transformam em verdes lentamente primeiro em suave tom amarelo aos poucos mas aos olhos de qualquer ser vivo tão rápido o amarelo vai adquirindo tonalidades de verde até chegarem a um tom intenso tão ofuscante quanto a própria existência o formato retangular vai se alterando os vértices se perdendo o papel vai ganhando consistência e aparência vegetal as folhas brancas que restam voam alto em ondas aleatórias se misturam a milhares de outras folhas brancas que chegam ou passam por acaso o verde intenso das folhas refulge na noite noite noite folhas alvas com textos de letras brancas caem na alva neve repousam as letras deslizam e se desligam do texto fundindo-se à neve brincam livres do papel formando no ar outras palavras outros textos elas se multiplicam e formam grandes blocos e montanhas a algazarra provoca uma avalanche avançam as letras misturadas com neve uma folha gigantesca branquinha flexível flutua diáfana uma coluna de letras em círculo a avalanche furiosa soterra terrenos fósseis de letras e palavras de antigas línguas que foram outrora achados letras excitadas se deixam levar pelas ondas de neve letras escapam entram nas cavernas onde ursos e cobras hibernam para contar histórias amalucadas engraçadas e emocionantes em seus longos sonhos de hibernação sonhos bons de comida farta as serpentes peçonhentas em seus sonhos venenosos aglomeram-se na caverna quente mexem-se convulsivamente formando um trançado frenético como num transe coletivo desacordadas elas se agitam alvoroçadas com sonhos gulosos promessas de banquetes apetitosos as letras se divertem vendo cobras gordas se contorcerem umas nas outras em sono denso ursos brancos e negros urram ferozes com sonhos vorazes de refeições sangrentas sobre a branca neve permanecerão assim cobras e ursos deliciados com promessas de fabulosas caçadas até que a neve e as letras cansadas se derretam nas rochas os ventos vindos dos confins do cosmo na frialdade e escuridão de um planeta localizado nas bordas do universo sopram furiosos fustigam as rochas e não só elas mas todo o gigantesco planeta neve de metano cai sobre a monstruosa cordilheira que se derrama em grande parte da porção setentrional do planeta nos vales rios de metano correm apressados e violentos com corredeiras cachoeiras e cataratas que vão desaguar num oceano sem fim de águas turbulentas água não metano líquido de ondas enormes no mais denso breu os ventos cósmicos se chocam e solapam o planeta negro e gélido provenientes de todas as direções do cosmo a grande cordilheira espia tranqüila do alto a sua própria solidez os mares de metano em sua instabilidade líquida parecem se expandir e depois refluir em movimento contínuo e repetitivo mas com ritmo variado no outro extremo do planeta nuvens negras de metano se acumulam pesadas carregadas relâmpagos riscam luminosos a negra noite seguidos de trovões ensurdecedores em instantes começa a chover grossas gotas formam sulcos no solo seco que rapidamente se juntam formando riachos e rios chove sem parar os rios vão se tornando largos e caudalosos chove meses a fio ou anos ou décadas ou milênios planeta onde o tempo parece ter se esquecido de si mesmo em região meridional o solo todo gretado revela rachaduras profundas onde se escondem lagos de lava incandescente o calor sobe e se dilui na frialdade que só aumenta com os ventos gélidos vindos de várias direções formam-se poderosos redemoinhos vorazes que competem entre si engolindo uns aos outros apesar dos fortes ventos glaciais uma fumaça que se estende a milhares de quilômetros domina e oculta a paisagem fumaça com forte cheiro de enxofre que vem do subsolo incandescente o vento sopra forte e violento pedras incandescentes explodem em contato com o sopro gelado os pedaços pepitas de rubi em fogo brilham na noite alienígena espetáculo pirotécnico nas franjas do universo nada é previsível estranhos fenômenos sucedem como num tubo de ensaio enlouquecido alguns fenômenos ocorrem uma vez então devido a sua fugacidade talvez não possam nem ser caracterizados como fenômenos outros se repetem durante algum tempo outros bem mais tempo até chegar aos que se repetem sempre os fenômenos que se repetem sempre são poucos se comparados ao número incalculável de candidatos a fenômenos este planeta escuro e gelado pertence a um sistema binário gira ao redor de uma estrela anã completa sua trajetória irregular ao redor dela em duas horas e sete minutos e vinte e sete segundos segue sua jornada errática como um ser macambúzio que persegue às escuras algo que não sabe nem concebe
Palavras em Transe - tela 2 (2007)
Acrílica s/ tela
219,0 cm (diâmetro)